28 outubro 2016

João Lobo Antunes




João Lobo Antunes

Marcos Borga


Morreu o neurocirurgião João Lobo Antunes. Tinha 72 anos, era atualmente presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. Recorde a sua últiam entrevista ao Jornal de Letras, publicada em outubro de 2015.

O bisturi e a palavra, a escrita cirúrgica: o cirurgião do cérebro sempre na companhia da literatura. Melómano, esteta, pensador humanista, é um dos grandes nomes da medicina portuguesa, Prémio Pessoa 1996, Prémio da Universidade de Lisboa 2013. Jubilado da sua cátedra da Faculdade de Medicina, afastado há dois meses da cirurgia, por doença, revela ao JL que prepara agora as suas memórias – e lança uma coletânea de ensaios, prestes a chegar às livrarias, que configuram uma arte poética e ética: Ouvir com Outros Olhos. O JL entrevistou-o e Miguel Real escreve sobre a sua obra e o novo livro.

Que fez dele um cirurgião do cérebro? Para responder a essa pergunta, João Lobo Antunes, 71 anos, está a escrever as suas memórias, muitas histórias que recorda do seu passado de décadas de vida médica, com a “vertigem” de quem põe a escrita em dia. E em tudo o que escreve se adivinha, adianta, uma forte e persistente “compulsão biográfica”.
A literatura, de resto, acompanhou-o desde um tempo ainda anterior à Medicina, paralelamente ao estudo metódico, horas a fio, cadenciado pelas badaladas do sino da igreja de Benfica, bairro onde cresceu. E a par da sua prática clínica, escreveu sempre. Ensaios, que o “pudor “nunca lhe permitiu a tentação da ficção.

Agora reúne de novo em livro, Ouvir com Outros Olhos, um conjunto desses textos, escritos nos últimos anos, alguns inéditos, outros dispersos por várias publicações. Uma edição da Gradiva, do seu amigo Guilherme Valente, em que além da medicina e da literatura reflete sobre as humanidades, a universidade, a ética, o estado social e Portugal. Uma ‘bula ‘do seu pensamento, em que avança algumas preocupações. A prescrição é pôr-nos a pensar olhando o mundo com todos os sentidos.

Ouvir com Outros Olhos culmina de alguma maneira o ciclo ensaístico iniciado com Um Modo de Ser (1996), a que se seguiram Numa Cidade Feliz (1999), Memória de Nova Iorque (2002), Sobre a Mão e outros ensaios (2005), Inquietação Interminável (2010) ou a biografia de Egas Moniz (também de 2010), o Nobel português da Medicina, entre outras obras e centena e meia de artigos científicos.
Nascido em Lisboa em 1944, estudou no Liceu Camões, depois na Faculdade de Medicina de Lisboa e no início dos anos 70 demandou Nova Iorque, onde prosseguiu a sua formação em neurocirurgia. O cérebro e as ciências neurológicas são um ‘pergaminho’ familiar, já que o pai também era neurologista – e prof. de Medicina. E filho de peixe… Dois dos seus irmãos seguiram o mesmo ramo, o escritor António Lobo Antunes, psiquiatra, e Nuno Lobo Antunes, neurologista pediátrico, que também já se estreou no romance. A escrita parece ser outra ‘jóia’ de família.
Investigador e cirurgião, João Lobo Antunes regressou a Portugal em 1984, passada mais de uma década nos Estados Unidos, onde se especializou e lecionou na Univ. de Colúmbia. Foi catedrático da Faculdade de Medicina de Lisboa, diretor do serviço de Neurocirurgia do Hospital de Santa Maria – e atualmente preside ao Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV). Uma carreira brilhante, reconhecida e premiada no país e no estrangeiro, a que aliou a intervenção cívica e política. Foi mandatário nacional das candidaturas de Jorge Sampaio e Cavaco Silva à Presidência da República.
Uma vida cheia, uma "guerra vivida com leveza”. É o que diz ao JL, no seu “escritório-reduto”, às Janelas Verdes, o claro outono a entrar sala dentro, de vez em quando com ironia, outras disfarçando uma subtil comoção, sempre a cuidar das palavras. E, sob a mão, que opera e escreve, uma amável humanidade
JL: Em Ouvir com Outros Olhos traça, de um modo lato, a sua ‘arte poética’?

João Lobo Antunes: Assumi sempre a escrita como atividade paralela da minha vida clínica, da qual me retirei bruscamente há uns meses, por causa da doença. E ao longo de todos estes anos em que fui cirurgião do cérebro, recolhi muitas memórias, histórias. Certamente foi a esse manancial, a esse tesouro, que fui buscar muito material para o que escrevi. Aliás, há muitos escritores médicos distintos, quer na nossa língua, quer noutras.

A proximidade do sofrimento, o conhecimento profundo da condição humana, propiciam a escrita?

Por exemplo, o poeta William Carlos Williams e o fenomenal Tchekhov reconheceram que o que colheram da sua vida como médicos foi essencial para a obra que construíram.

No seu caso, carreou a experiência e a escrita fundamentalmente para o ensaio. Porquê?

Nunca consegui ultrapassar uma barreira, um certo pudor, que me impede de ser um contista, um romancista como Fernando Namora ou o meu irmão António [Lobo Antunes] e tantos outros.

Que pudor foi esse?

Qualitativamente, era para mim um salto que não tinha coragem de assumir. Este meu livro está semeado de evocações de pessoas e de episódios, mas acho que nunca seria capaz de escrever uma novela ou um conto.

E nunca teve essa tentação?

Não. Mas há no que escrevo uma “persistente compulsão biográfica”. Fui buscar essa expressão à admirável tese de doutoramento sobre Padre António Vieira de Margarida Vieira Mendes, que foi minha cunhada e morreu tão cedo [foi mulher de Miguel Lobo Antunes, mãe de José Maria Vieira Mendes]… Ela dizia justamente que na pregação de Vieira estava sempre presente essa compulsão. É curioso que mesmo quando escrevi sobre ética médica pura me foi apontado, quase como uma crítica, que personalizava muito o que dizia. De facto, a reflexão que fiz sobre temas éticos é a história das minhas inquietações. Ou seja, em que medida os diversos problemas e desafios que se punham à ética contemporânea me faziam vibrar, me interrogavam e deixavam perplexo. A coletânea que fiz dos meus escritos estéticos chama-se mesmo Inquietação Interminável. Ouvir com Outros Olhos tem também essa perspetiva biográfica. E depois de o ter concluído, lancei-me numa outra aventura.

Qual?

Quando cheguei aos 70 anos, perguntei precisamente a mim próprio o que iria fazer, agora que já não tinha que ir todas as manhãs para o Hospital de Santa Maria, coisa que me dava um enorme prazer. Decidi que ia entreter-me com a minha inteligência. Dito assim, isto pode parecer um pouco pretensioso, mas pensei que iria ser como um mineiro a escavar as recordações, uma exploração da mina da minha experiência, lembrando no fim da vida todas essas histórias e sobretudo divertindo-me. É isso que estou a fazer, a escrever as minhas memórias. A ideia é saber como me fiz cirurgião do cérebro.

Centra-se nos anos iniciais da sua carreira?

Desde a altura em que nasci, o meu ambiente familiar, toda a formação, a ida para Nova Iorque, até ao meu regresso a Portugal, para ser professor de neurocirurgia. Tem-me dado muito prazer escrever estas memórias. A ameaça de mortalidade que a minha vida atravessa neste momento, que tenho encarado com relativo otimismo, faz com que esteja envolvido nessa tarefa quase como uma vertigem.

Com urgência?

Com medo de não conseguir chegar ao fim. Nessa memória, a biografia afirma-se com extraordinário vigor e imediata nudez. É a minha história, a visão que tenho de mim próprio e sobretudo procuro responder a essa pergunta que fui pondo a mim mesmo toda a vida: como me fiz assim, como é que a medicina me fez médico? É interessante como a profissão faz de nós aquilo que somos. E isso não se aprende nos bancos das escolas.

E então o que fez de si um cirurgião do cérebro?

Ah, para o saber tem que ler o livro, quando sair [risos]. Não há dúvida que teve importância o meu pai. De seis filhos rapazes, três foram para Medicina, três para a área das neurociências. Vivia-se o cérebro naquela casa. A certa altura, pensei ir para cardiologia, porque achava a mais matemática das especialidades, embora hoje seja muito diferente e interventiva. Por outro lado, desapontava-me a ineficácia, a impotência terapêutica da neurologia. Isto há 50 anos. O diagnóstico era elegante, mas havia pouca coisa a fazer para ajudar os doentes. O braço armado da neurologia era a neurocirurgia e foi o que fiz. E confesso que houve outra tentação.

Que foi…

Desenhava com algum talento, modelava, esculpia, mas não era dotado de mãos habilidosas. Ainda hoje, se tento reparar um eletrodoméstico, os movimentos são quase grotescos. Era portanto um enorme desafio ir para neurocirurgia e perguntava-me mesmo se seria capaz de usar as mãos para operar. Curiosamente, quando opero, do ponto de vista técnico e gestual, estou mais próximo do pintor, o bisturi mais perto do pincel do que da chave de fendas. É claro que tive bons mestres, que me ensinaram a técnica e a estratégia, igualmente importante. A pouco e pouco, consegui dominar bem as duas mãos. São a guitarra e a viola. E comecei a ter um prazer quase sensual no ato da cirurgia e um conceito estético.

Estético?

Os movimentos têm que ser elegantes, diretos, leves como uma pluma.

Parece referir-se a uma dança e não a uma cirurgia ao cérebro, que temos a ideia de ser qualquer coisa de muito violento e brutal.

É evidente que conheci cirurgiões brutais. Mas no Instituto Neurológico de Nova Iorque, onde me formei, era fundamental a ideia de que o cérebro é um órgão sagrado, onde se deve tocar com rigor e especial delicadeza. Havia o princípio de técnica cirúrgica, tentar tirar um tumor sem tocar no cérebro. Nem sempre é possível, mas é o desejável. Essa foi a doutrina que aprendi. Um dia um dos meus mestres, falando de cirurgias e de técnicas, disse-me que alguém era um cirurgião porco, porque acabava as operações com a bata suja de sangue, limpava as mãos nela. A partir daí, percebi que o ideal era sair da cirurgia com a bata imaculada, sem uma mancha…

Depois de tantas cirurgias, continua a achar que o cérebro tem esse caráter sagrado?

Tem que ser tomado como tal, até por ser tão distinto de todo o resto do nosso corpo. E, no entanto, quando o olhamos é tão indiferente no seu aspeto, tão monótono. Hoje em dia temos técnicas de neuronavegação que nos permitem olhar aquela massa indiferente e saber o que cada zona representa. Escrevi já um texto literário sobre o ato de operar com o doente acordado, o que se faz hoje cada vez com mais frequência.

O que sobretudo lhe interessou nessa experiência?

O diálogo que vamos mantendo com o doente, enquanto decorre a cirurgia. Ele vai falando connosco e através do que diz, vamos percebendo onde estão os terrenos proibidos e por onde podemos avançar. Foi assim, aliás, que a neurocirurgia começou. Num capítulo que já escrevi das memórias, reencontrei uma história fantástica de um dos meus mestres na América, um famoso cirurgião de um grande carisma que uma vez estava a operar, com anestesia local, e a doente perguntou se podia fumar um cigarro. Ele respondeu: “Go ahead, honey”. Começou a ver-se sair fumo debaixo dos panos, enquanto continuava a operar, impassível… [risos]

A palavra é, nessas cirurgias ‘conversadas’, o fio que mantém a vida?

Sim, sim. Falo muitas vezes da importância da palavra, como acontece no fim de um dos textos de Ouvir com Outros Olhos. Pouco antes de morrer, o filósofo Fernando Gil disse-me que estava a escrever sobre as preposições. Até com palavras que nos parecem insignificantes, podemos construir uma filosofia, um poema. Sempre senti esse encanto da palavra. Quem não estudou pelos livros, nem sabe o que perdeu. E quem não aprecia as palavras também não.

Quando escreve, cuida minuciosamente da linguagem?

Até quando falo. Nunca fui capaz de usar frases mal construídas, quando conversava com um doente ou qualquer pessoa. É em mim natural esse apurar do discurso. A linguagem ensina-nos a pensar. Isso torna-se particularmente interessante quando as pessoas são bilingues, como é o meu caso. Uso o português e o inglês para funções diferentes. O inglês é mais prático, introduzi na sala de operações uma série de termos ingleses. E acontece em algumas situações com emoções mais fortes, por exemplo quando falo com as minhas filhas.

E a Língua Portuguesa?

É um conforto, é extremamente enriquecedora.

Vem de longe o seu interesse pela literatura?

É fundamental para mim. Mesmo o ensino da ética poderia fazer-se quase exclusivamente a partir de livros de ficção. Está lá tudo. A Morte de Ivan Ilitch, por exemplo, cobre tudo o que se pode dizer de pertinente em relação à morte. É extraordinário como Tolstoi conseguiu captar todas as nuances. Sentimo-lo particularmente quando passamos pela experiência de uma doença séria.

Voltou a ler agora esse romance?

Releio-o constantemente na minha cabeça, quase o podia reconstituir de cor. E já escrevi sobre isso.

Está a escrever as memórias de raiz?

Tenho partes antigas, mas também muitas novas, porque a concentração absoluta no passado em que vivo hoje, por causa da escrita, vai-me fazendo descobrir outras coisas. É como uma luzinha que está sempre a aparecer num cenário negro, vou ver o que me está a chamar e lá está mais uma narrativa. Preocupa-me um pouco se as pessoas vão entender estas memórias apenas como celebração de um triunfo, de um sucesso na vida.

Mas teve-o.

Objetivamente, consegui-o. Mas talvez não percebam que foi graças a uma total dedicação ao trabalho e a um programa muito austero ao serviço das pessoas e das ideias. Por outro lado, vou escrevendo com uma vaga desconfiança em relação a quem serão os meus leitores.

Em que sentido?

Se isto que me interessa escrever, interessará a alguém ler. Pelo menos os meus netos um dia talvez tenham curiosidade de saber o que o avô fez. E ainda não arranjei um título. Se fosse em inglês, sabia.

Qual seria?

The Making of a Brainsurgeon.
Aliás, já fiz uma conferência com esse título. Mas em português, não me parece feliz. Também não posso chamar-lhe De Benfica a Nova Iorque, que ainda se confunde com a biografia de algum futebolista do Benfica … [risos]

Cita diversas vezes Montaigne no seu livro, nomeadamente quando fala do métier e da arte de viver.

E julgo que numa das Cartas a Lucílio, Séneca diz “vivere militare est”: a vida é uma guerra, uma luta.

É isso que a sua vida tem sido? Uma guerra?

Tenho refletido muito sobre o que foi a minha vida e diria que se houve guerra foi vivida com leveza. Perdi muitas batalhas, como médico e cirurgião. Mas ganhei mais do que perdi. Devo dizer que sempre com uma estratégia cautelosa. Nunca me meti numa guerra que não achasse que tinha possibilidade de vencer. Ou seja, fui sempre pragmático, apesar dos meus devaneios literários ou filosóficos. E tive muitas quando voltei a Portugal.

Um momento de mudança?

A minha vida teve duas grandes etapas, a primeira aquela que se concluiu com o meu regresso a Portugal, em que fui basicamente um clínico que fez investigação - muita, e acho que boa. Mas não estava então envolvido em qualquer forma de vida pública ou cultural organizada. Quando voltei, abriu-se uma nova etapa em que comecei a ter mais intervenção, depois de um período de análise da situação social.

Certamente era diferente o país que encontrou?

Muito diferente daquele que tinha deixado. Dez anos depois do 25 de Abril, havia um jogo e regras completamente diversas. Por isso, tive esse tempo de observação, que fiz com imensa ternura em relação ao meu país.

Foi essa ternura que o levou a voltar?

Sim. De resto, os dois últimos textos de Ouvir com Outros Olhos são dedicados a Portugal. Muito simples e despretensiosos, mas que quis deixar como testemunho de devoção à minha terra. E também por isso comecei a intervir, na escola, em várias organizações, assumi uma série de incumbências.

E foi mandatário da candidatura de dois Presidentes da República.

Tive uma presença política e pública, mantendo-me sempre independente, porque nunca me filiei em nenhum partido. Também uma intervenção importante na minha universidade.

A universidade é um dos temas de Ouvir com Outros Olhos.

Este livro é provavelmente a minha última coletânea e representa o que fui escrevendo nos últimos anos, muito heterogéneo por natureza. Quis manter essa heterogeneidade, agrupando os ensaios em pares. Num deles, conto a história da fusão das duas grandes universidades, na Universidade de Lisboa, em que participei. É um exemplo importante neste momento.

Porquê?

Porque é agora necessário fundir boas vontades e encontrar compromissos, consensos, o que foi possível entre duas universidades tão distintas. Este livro também dá um pouco testemunho do que pode ser feito, usando uma análise crítica, independente, mas orientada para o que deve ser o interesse público, dos cidadãos, do país.

Outro dos ensaios é sobre o Estado Social, que está na ordem do dia.

O que chamo a atenção é para o facto de o Estado Social não ser nada de abstrato, mas muito concreto: o Estado Social somos nós todos, independentemente do que fazemos, do nosso estatuto e da nossa situação económica ou financeira. Por isso é de uma responsabilidade fundamental preservá-lo, mas também perceber em que direção se pode orientar, tendo em conta a modernidade e as complexidades atuais.

Numa palavra, Justiça, resume, num dos ensaios, o que deseja para Portugal. É o que mais nos falta?

A ideia de Justiça não pode ficar refém das ideologias. Tem que ser aplicada, vivida como uma condição de liberdade. O que fundamentalmente me preocupa são as questões da equidade, do acesso, e da reflexão que é preciso fazer e que as pessoas tendem a ignorar, porque não lhes convém olhar de frente os problemas. Refiro-me, por exemplo, ao facto de os recursos serem finitos e as despesas com os tratamentos e as tecnologias crescentes, em espiral. Atualmente mesmo com contornos abjetos. Alguns laboratórios compram patentes e isso dá-lhes a liberdade de tornar determinados medicamentos quase inacessíveis. Neste momento, estou a receber um tratamento que se tem revelado de uma enorme eficácia, mas vai custar uns milhares de euros. Haverá uma altura em que será necessário escolhermos se uns meses a mais de vida, com um custo incomportável, se justificam.

Não será uma reflexão pacífica...

Do ponto de vista ético, há muitas causas fraturantes, em que toda a gente acha que sabe e tem uma opinião segura e fundamentada, quando a maior parte das vezes é ignorante. A eutanásia, só para dar um exemplo. As pessoas não sabem nada o que representa, sobretudo na mudança quase radical no paradigma da prática médica e do entendimento da função do médico. É preciso chamar a sociedade a refletir e discutir todas estas questões. A decisão não pode ser entregue apenas a um grupo, seja ele qual for, de políticos, de governantes, da indústria ou da academia. Tem que ser um compromisso nacional. Há todo um processo a fazer de educação da sociedade portuguesa, para criar alguma literacia ética nestas matérias delicadas. Mas não, as pessoas apenas se vão distraindo, com alguma culpa dos media, quando há extraordinários desafios. Com que olhos vemos, por exemplo, as imagens televisivas daqueles barcos tão frágeis, carregados de pessoas como nós, que fogem da guerra, da fome? Talvez com uma compaixão, mas passiva. A minha preocupação moral vai nesse sentido e é sobre isso que tenho falado muito.

Em relação à sua prática clínica, fala de uma “medicina narrativa” e justamente de “compaixão”. 

Os filósofos que me perdoem, mas criei esse termo, “compaixão ontológica”. Isto é, a compaixão que emerge da raiz do ser que nós somos. Fui apurando-a com a idade: um aperfeiçoar do olhar, do ouvir Foi uma surpresa, porque achava que o tempo me ia tornar empedernido.

Esse é o lugar-comum, do médico, frio, que ganha uma carapaça de indiferença.

Foi um consolo perceber que não era assim. Quando comecei a ter mais tempo para estar com cada um que me procurava, criei quase um prazer, como aquele que temos quando ficamos sentados à mesa, com os amigos, depois do jantar, do café. A consulta tornou-se uma conversa em que tentava ouvir, perceber melhor quem estava à minha frente.

Um olhar humanista?

Gosto de olhar para as pessoas. A minha mulher [Maria do Céu Machado, pediatra, diretora do Hospital de Santa Maria] até diz que olho muito [sorriso]… Lembro-me sempre de uma altura em que Sydney Brenner, uma das maiores figuras da biologia molecular, Prémio Nobel, muito ligado a Portugal, esteve em Lisboa e eu levei-o a um restaurante no Guincho com uma vista espantosa. Achei que o devia pôr num lugar em que ele olhasse para a paisagem. Ele disse-me que mar tinha ele na Califórnia e que preferia virar-se ao contrário para ver as pessoas, o povo do país que estava a visitar. Nesse olhar, mesmo em consulta, está implícito o escritor, o narrador, mesmo que não ponha nada por escrito. Mas fica guardado.

Neste livro escreve também sobre um par de amigos.

O grande filósofo Fernando Gil e um colega cirurgião, excelente, Henrique Bicha Castelo… Aproveito mesmo para dissertar sobre se dois cirurgiões podem ser amigos, ou como se sustenta a amizade em oficiais do mesmo ofício.

E não podem? É grande a rivalidade?

Os cirurgiões têm algumas características psicológicas muito particulares, pensam que estão munidos de poderes demiúrgicos e são altamente independentes. Mas vigiam-se uns aos outros e está latente um espírito de competição, de rivalidade. É muito difícil ser-lhe imune.

Diz que o filósofo Fernando Gil foi uma referência fundamental, que conheceu tarde de mais. Porquê?

É uma referência intelectual, cultural muito importante para mim, que cito frequentemente. Uma outra é George Steiner, cuja obra conheço profundamente. De alguma maneira, foram os meus maîtres à penser, pessoas que me ensinaram a pensar. O Fernando chegou realmente tarde à minha vida e partiu cedo de mais. Quando ele adoeceu, tínhamos combinado ir passar uns dias aos Alpes. As nossas mulheres iriam esquiar e nós certamente ficaríamos a conversar na cabana, se calhar a beber um conhaque…

E de que conversavam o filósofo e o cirurgião do cérebro?

De tudo e de nada. Fernando Gil era um homem de uma cultura extraordinária e costumava dizer que eu tinha algo que ele não tinha: o conhecimento das vidas. Esse era o ponto de equilíbrio. Falávamos de Filosofia, de projetos, do que fazíamos, de livros. E muitas das nossas conversas eram silenciosas.

Sobre dois livros, De Profundis, Valsa Lenta, de José Cardoso Pires, e Sôbolos Rios Que Vão, de António Lobo Antunes, escreve dois ensaios.

Diria antes que são dois comentários, que, de resto, escrevi para o JL.

Foi um interveniente ativo no livro de Cardoso Pires, já que ele o escreveu depois de ter tido um AVC e de ter sido tratado por si no Hospital de Santa Maria.

Tive nisso um papel menor. O maior foi mesmo fazer com que ele escrevesse e publicasse. Incentivei-o imenso. O meu ensaio é um pouco a nossa história: Zé, eu e o livro. Tivemos um grande contacto ao longo dos anos e guardo de Cardoso Pires algumas notas fantásticas. O outro comentário é sobre o romance do meu irmão António e foi a única vez que escrevi sobre a sua literatura. Uma obra em que ele aborda a sua experiência como doente, depois de ter sido operado a um cancro, de que felizmente recuperou muito bem.

Gosta de fazer crítica literária?

Sempre tive a tentação de escrever sobre literatura. Se tivesse outra vida, queria tirar um curso, reencarnar como um literato, mas desde que guardasse a experiência colhida como cirurgião na vida anterior.

Imagino que já voltou a pôr o despertador para muito cedo, o que estranhou não ter que fazer, quando se jubilou…

Mantive de facto uma série de atividades e aparecem-me dúzias de convites para falar aqui e ali, integrar comissões disto e daquilo. Conservei também o Conselho Nacional de Ética, do qual sou agora presidente, só o destino sabe até quando. Também um trabalho mais técnico que me pareceu importante: tentar definir os centros de referência nas várias áreas da saúde. E tenho ainda outro projeto.

Literário?

Sempre vivi para resolver problemas, de outros. A minha intervenção cívica e pública tinha esse sentido pragmático. Quando adoeci, a minha filha mais velha, Margarida [Maria João, Paula e Madalena, são as outras três filhas], também médica pediatra, começou a enviar-me um poema todos os dias, em língua inglesa, à volta da variedade do amor. Tenho-me entretido a traduzi-los.

São dos seus poetas preferidos?

Alguns da admirável Szymborska, que conheci na tradução francesa. Mas também de Robert Frost, E. E. Cummings e outros.
E está a gostar de os traduzir?
É um exercício de uma dificuldade fascinante. O meu projeto é fazer uma seleção e publicá-los, um livro chamado 50 Poemas para o Meu Pai. Evidentemente, há poesia portuguesa muito boa e sólida, mas talvez fosse interessante. É com tudo isto que me vou entretendo. A solidão pode ter uma robustez criadora, ser um refúgio.

Essencial para si?


Toda a vida. Aprecio muito o convívio, mas tive sempre aquilo a que Montaigne chamava uma sala no fundo da casa que nós somos. Tem diversas divisões, mas há uma que fechamos à chave e só deixamos entrar muito poucos. Aproxima-se muito do núcleo personalista, daquilo que é a nossa única pertença, aquilo que é verdadeiramente nosso. É isso que em parte também transparece em Ouvir com Outros Olhos. E tenho muito mais papéis por organizar. Estou ativo. Porque não posso, nem devo deitar fora uma experiência de tantos anos.




27 outubro 2016

Guardem do meu Coração algum tanto!




GUSTAVO BOM/GLOBAL IMAGENS


O Grande Auditório da Faculdade de Medicina de Lisboa foi pequeno para as centenas de pessoas que acorreram à última lição do professor.

Os psiquiatras gostam de silêncio e foi sem palavras que começou a última lição de Daniel Sampaio, ontem na Faculdade de Medicina de Lisboa. Apenas o som de uma peça de piano de Shostakovich a acompanhar a um quadro de Marc Chagall na tela do palco. Com esta dupla mensagem, o professor evocava o dilema do compositor, "que viveu dividido entre a liberdade da sua criação e a obediência a um regime ditatorial".

O auditório encontrava-se cheio, com muitas pessoas em pé e outras sentadas nas escadas. Alunos, professores, médicos e amigos partilharam a lição que foi, afinal, o percurso biográfico e profissional de Sampaio, concluindo com críticas e propostas para o futuro.

Na fila da frente, estavam em destaque dois ex-presidentes da República - Ramalho Eanes e Jorge Sampaio - o secretário de Estado da Saúde, Fernando Araújo, o diretor-geral da Saúde, Francisco George, Isabel Mota, Correia de Campos, Maria de Belém Roseira, Manuel Alegre e Maria Luísa Guerra, a professora de Filosofia que aconselhou Daniel Sampaio a seguir "psicologia ou psiquiatria", e também a família mais próxima da numerosa "tribo", como lhe chamou o professor.

O Prelúdio em Lá Menor n.º 7 de Shostakovich acompanhou, por um minuto e 23 segundos, o quadro O Concerto que Chagall pintou em 1957. Antes, já o diretor da Faculdade de Medicina de Lisboa, Fausto Pinto, tinha feito o elogio do professor, numa intervenção concisa que só dividiu a audiência quando referiu a preferência de Sampaio pelo Sporting. O catedrático agradeceu, em nome da escola, "por tudo o que fez na e pela nossa instituição". Depois da lição, o secretário de Estado da Saúde falou em nome do Governo, também ele elogiando e agradecendo a ação do professor e do profissional.

Em tom solto e fluido, Daniel Sampaio falou durante mais de uma hora, sintetizando o livro Última Lição. Falou da família e da "educação de caráter" que ali se praticava. Brincou com a touca de lã que usava na fotografia da avó Sarah com os três netos: "Ela previu o caminho que cada um de nós ia fazer. Disse que o meu irmão Jorge, que devem conhecer, ia ser político, o meu primo Filipe cientista, e de facto é um grande Físico, e sobre mim previu várias coisas, e acertou: a psiquiatria mistura os vários temas de que ela falou."

A lição foi ilustrada por fotografias, incluindo os grandes mestres: de Barahona Fernandes e Eduardo Luís Cortesão a João dos Santos e Pedro Polónio, toda uma lista de nomes essenciais da história da psiquiatria portuguesa. E uma foto histórica: Sampaio com José Gameiro e José Neves Cardoso, num congresso de terapia familiar em Florença. No regresso, decidiram criar a Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar. E outra: uma das centenas de sessões em escolas, no caso em S. João da Madeira, com tantos alunos que foi preciso fazê-la no exterior e com megafone.

Um tema agitou a sala, sobretudo os responsáveis pela saúde: as restrições da intervenção de um diretor de serviço (cargo que ocupou na Psiquiatria de Santa Maria), esmagado por sucessivos poderes hierárquicos. "Nem sequer se pode escolher a equipa de trabalho".

A grande proposta de Daniel Sampaio, com a qual terminou a lição, é um programa de intervenção nos comportamentos autolesivos na adolescência, referida na edição de ontem no DN, e que ele gostaria de ver adotada no plano nacional.

Depois de aplausos demorados, houve de novo música, cantada e tocada ao vivo pelo Coro e Orquestra Médica. Uma surpresa para o professor, com obras de José Afonso, Edward Elgar e Brahms.


30 setembro 2016

Olhar através do buraco da fechadura





Acredito em Deus no sentido em que tenho de acreditar num Criador, a exemplo dos grandes físicos e matemáticos do século vinte, mas não posso aceitar, e regresso ao medo da morte e à nossa incapacidade de encará-la, que as religiões explorem esse medo de forma tenebrosa. Tal como são, aliás, tão primárias, tão ditatoriais, construídas sobre dogmas sem sentido, estão, inevitavelmente, condenadas a acabarem.
Ninguém está preparado para morrer, nem sequer um filósofo budista de cem anos, com sífilis, cólica renal, a unha do dedo grande do pé encravada e dor de dentes. Quando, no internato de Psiquiatria, comecei a trabalhar com pessoas que haviam falhado tentativas de suicídio, o que mais me surpreendeu foi a sua sensação de imortalidade. O suicídio é sempre o assassínio de um outro. Quando o meu bisavô deu um tiro na cabeça não era a ele que estava a matar: era o cancro do pulmão de que sofria. Se eu enfiar uma bala no doente do cancro que me habita, a pessoa saudável que sou, debaixo desta, torna a aparecer e continua viva. Ou, se tomar remédio das baratas, é a depressão que eu destruo. Ou, se acabar com a criatura abandonada pelo cônjuge, a criatura não abandonada, a que esta se sobrepôs, regressará. Explicado assim, de uma maneira muito esquemática, julgo que se torna relativamente claro. É óbvio que as coisas se passam de uma forma mais complexa e florida porém a base é esta. Porquê? Porque ninguém está preparado para morrer de facto. Os doentes com males incuráveis, orgânicos, acreditam sempre na cura, mesmo que afirmem o contrário. As religiões, tal como são praticadas, nascem do medo da morte, já o disseram tantos, de nos ser insuportável encarar o nosso fim. Isto nada tem a ver com a existência ou não de Deus, que é uma questão de outra ordem e muito mais complexa. Einstein costumava insinuar que Deus não era um vertebrado gasoso, ou seja aquilo que, em geral, as religiões nos querem fazer acreditar. Um provérbio húngaro, bastante antigo, afirma que na cova do lobo não há ateus. As religiões vivem da promessa da vida eterna, da garantia de milagres, da venda de bem aventuranças. Porquê? Porque sem isso a existência se tornaria insuportável, com o espectro da finitude à nossa espera. Atente-se, por exemplo, nos números de Lourdes há vinte ou trinta anos: curas aceites pela Igreja Católica: setenta e quatro; curas aceites pelos médicos: doze; número de acidentes a caminho do santuário: dois mil cento e quinze, e isto dá que pensar. Fátima, com a Virgem a pedir aos pastorinhos que rezem pela conversão da Rússia, é uma coisa completamente idiota excepto para Salazar e para a Igreja, em relação à qual constitui um soberbo negócio à custa do pavor e do sofrimento das pessoas
(e é isso que me indigna)
sem que uma única voz crítica, na hierarquia do Catolicismo, se oiça contra isto, o que não me espanta muito. Porque carga de água até hoje, por exemplo, a Igreja do nosso País nunca pediu desculpa, aos portugueses, pela sua activa colaboração com a ditadura, mantendo-se num silêncio que se me afigura criminoso? Porque carga de água só trezentos e muitos anos depois, com João Paulo II, foi retirada a condenação a Galileu, o canalha que afirmou ser a Terra a girar em torno do Sol? Porque carga de água a subalternização das mulheres prossegue tranquilamente com aceitação quase geral? Se Cristo regressasse aceitaria isto? Mas a Igreja, infelizmente, não foi fundada por ele, começou mais ou menos a ser estruturada por São Paulo, e a Fé não pode ser uma Graça concedida, tem que ser uma Graça conquistada. Como seremos capazes de odiar os fundamentalismos se somos horrivelmente fundamentalistas, agarrados a crenças ridículas, como a crença no Inferno, no Purgatório, no Céu, por exemplo, compreensíveis há mil e tal anos e, agora, caricatas? Acredito em Deus no sentido em que tenho de acreditar num Criador, a exemplo dos grandes físicos e matemáticos do século vinte, mas não posso aceitar, e regresso ao medo da morte e à nossa incapacidade de encará-la, que as religiões explorem esse medo de forma tenebrosa. Tal como são, aliás, tão primárias, tão ditatoriais, construídas sobre dogmas sem sentido, estão, inevitavelmente, condenadas a acabarem, é apenas uma questão de tempo que, aqui se medirá, por força, em séculos. Por baixo de tudo isto está, obviamente, a não aceitação da morte e as variadíssimas estratégias que tentamos construir para conjurá-la. Camões, por exemplo, falava daqueles que por obras valorosas se vão da lei da morte libertando. Vão-se libertando da lei da morte uma ova. As obras podem ficar: eles não. De mim, por exemplo, talvez durem papéis. Eu desapareço. E, mesmo assim, obras e papéis desaparecerão também. Aristóteles falava de dez grandes dramaturgos gregos. Não resta nada de nenhum deles. Sobram três, que não constavam da sua lista: Sófocles, Ésquilo e Eurípides. De Sófocles vários dramas, dos outros um ou dois ou nem tanto: fragmentos soltos. E, inevitavelmente, esses dramas e esses fragmentos sumir-se-ão também. O problema é que não suportamos esta evidência. Se existe um Criador, e eu acredito que exista, não conhecemos as suas leis nem os seus desígnios e não fomos, certamente, feitos à sua imagem e semelhança. E, chegados aqui, entramos num vazio angustiante porque ficamos privados de esperança, e a privação da esperança é intolerável. A mãe de Blondin afirmava: não tenho Fé, mas tenho muita Esperança. Eu tenho Fé e tenho Esperança. Quando me atrevi, já perto do seu fim, a perguntar ao meu pai se acreditava em Deus, ele, que trabalhava com cérebros, respondeu apenas, após um longo silêncio
– O nada não existe na Biologia
o que é verdade. O nada não existe na Biologia. E isso chega para me impedir o suicídio e de olhar para mim, como tu escreveste, Alexandre, através do buraco da fechadura.


Fonte –  Visão 

29 setembro 2016

Ùltima Entrevista de Miguel Portas





Última grande entrevista que Miguel Portas deu ao Expresso, a 23 de julho de 2011.


Foi um dia inteiro de conversa.
Pela primeira vez Miguel Portas - o Portas de esquerda - aceitou falar da sua vida. Horas depois da entrevista, seguiu para Bruxelas e recomeçou os tratamentos contra o cancro do pulmão, detetado há um ano. Numa conversa entre velhos amigos, falou da doença, da família, da política e do seu legado. Miguel Portas confessou-se em casa dos padrastos, Afonso Howell e Margarida Lobo, respetivamente segundo marido da mãe e segunda mulher do pai, com quem mantém uma relação chegada.
Foi na Arrábida, entre imagens de anjos e santos, que o antigo militante comunista assumiu ser um missionário e que já acreditou em milagres.
Jornalista, político, deputado. Profissionalmente, és o quê? De formação, sou economista. Não exerci para não prejudicar o país (risos). Depois veio a crise e eu estava no Parlamento Europeu e voltei seriamente à macroeconomia. A minha profissão é jornalista. A minha comissão de serviço é na política.

Estás a brincar... Só faço política a tempo inteiro há sete, oito anos! O que não significa que ao longo da vida inteira não tenha feito política na condição de cidadão.

Tiveste quantos anos no jornalismo? À vontade 15 anos. Comecei nos anos 80 a fazer a "Contraste", uma revista de movida cultural, distribuída diretamente por nós.

E acabou por falta de fundos... Sim, mas com uma conexão política. O golpe fatal foi dado num número sobre 'Festas'. Creio que foi o Rui Zink a ter a grande ideia de fazer uma capa cujo título era 'Ai Álvaro, faz-me festas mais Avante'. Tirei o 'Ai, Álvaro', que era muito provocante e a revista avançou. Mas ficou condenada.
Parece divertido, mas não paga as contas. Vivias como?Comecei como revisor de provas na Heska, a tipografia onde se fazia o "Diário". Um ano daquilo e só conseguia ver gralhas nos jornais! Nessa altura, o "Diário" pediu-me para inventar cartas de leitor, foi a minha primeira tarefa como jornalista, escrever cartas sobre o PS. Depois, fui funcionário público. Trabalho desde os 17 anos. Um dia, atirei isso à cara da minha mãe. Ela respondeu: "Tu não sabes o que é trabalhar. Trabalhas porque queres, não porque precisas."

E quando chegas ao Expresso? Convidaram-me depois de a "Contraste" acabar. Entro em 1986, até que Sampaio resolve candidatar-se à Câmara de Lisboa e eu vou com ele.

Fazer o quê? Faço a campanha, sou um dos escritores de discursos. Fiquei dois anos como assessor na Câmara, nas relações entre a Cultura e o Urbanismo.

Ainda eras militante comunista? Sim. As coisas que ouvi! Sampaio conhecia-me desde miúdo e convidou-me para assessor. Fui perguntar ao partido, falei com o camarada Octávio Pato. Ele respondeu-me que não: "És crítico e isso pode prejudicar as relações entre o Partido e o Sampaio." Eu disse-lhe: "Como sou amigo pessoal dele, até julgava que isso podia facilitar. Mas há um pequeno problema: eu disse ao Sampaio que só iria se o PC aprovasse." Acabou a conversa. O Pato foi para cima discutir e eu fiquei assessor.

E porque não saíste do PC? Queria um projeto de esquerda para a cidade de Lisboa e tinha uma ligação afetiva. Nos últimos tempos havia uma espécie de acordo não escrito: eu fazia basicamente aquilo que queria e, em troca, também não os chateava muito. Tinha o que um camarada da direção disse: "O teu problema é que tens traços de personalidade". No comunismo é um risco de defeito.

Tiveste um estatuto especial? Sempre fui uma pessoa razoavelmente heterodoxa dentro do PC, mas sempre respeitei a disciplina.
Houve alturas em que preferi não ter responsabilidades políticas por não concordar com a orientação. O partido habituou-se a lidar comigo, sempre um pouco desconfiado. Foi uma espécie de família e de casa. Até que ao fim de 18 anos acabou.
E ficaste assessor do Sampaio e militante comunista? Sim. A minha principal tarefa foi a reconceção das festas da cidade. A ideia ainda dura. Essa e a dos megaconcertos.
O extraordinário é continuares a considerar-te jornalista. Porque a minha profissão foi essa. Depois da Câmara, saí do Expresso para criar o "Já". Era um híbrido entre revista e jornal. Durou um ano.

Era mais um projeto de intervenção cultural! Sim. A razão por que me torno jornalista é porque aprendi a fazer comunicados. A lógica argumentativa é 'o que, porque, quando'. Um comunicado é a primeira peça jornalística da história de muitos diretores de jornais.

Estás a dizer que tudo o que sabes, aprendeste no PC... Não tenho dúvida nenhuma de que aminha formação foi muito marcada pelo PCP. Foi metade da minha vida ativa! Entrei com 15 anos!

E porque é que entras? Quem cresce num meio burguês como o teu... Ser burguês não é defeito, é condição!

Mudaste de família, foi isso? Foi mesmo uma grande família. Vou parar ao PC com um trajeto que muita gente fez: do catolicismo ao cristianismo e daí ao comunismo. Fiz uma adesão ao PC pelo lado intelectual. A maioria das pessoas fê-la decorrente das condições de vida, do ambiente familiar. No Alentejo, nascia-se comunista.

Não no teu lado alentejano da família... Por isso a minha adesão é pela via intelectual. Quando eu nasci, a minha mãe era funcionária pública e o meu pai tinha acabado Arquitetura e estava a preparar o doutoramento. Era uma família sem problemas de dinheiro, mas de pequena, média burguesia urbana.

Tens uma formação católica? Forte. O meu pai era um católico progressista. A minha mãe à época era bastante menos crente. Lembro-me da família toda à frente do televisor a assistir à vinda do Papa Paulo VI. Quando havia problemas em casa, eu rezava a uma cruz modernista que havia na parede. Quando os problemas se resolviam ou as discussões acabavam, associava isso a um milagre. Sou um homem de convicções firmes.

E ias à missa? A razão por que saí de casa da minha mãe, aos 12 anos, foi porque queria ir a uma missa.

Uma missa progressista, claro. Tinha um padre progressista e guitarradas. Eu gostava. A minha mãe proibiu e eu deixei-lhe um bilhete: "Entre a mãe e Deus, escolho Deus."

Ainda é verdade? Já escrevi coisas melhores. A minha mãe queria, legitimamente, ir à praia e achou que eu podia ir à missa ao fim da tarde. Fechou-me à chave na sala e eu fiz o que vi nos filmes policiais: meti um papel entre o chão e a porta, a chave caiu e puxei-a. Fugi para ir ter com o meu pai. Quando voltei, não era Deus que estava à minha espera, mas a minha mãe...

E a saída de casa tornou-se definitiva? Porque a minha mãe ficou um bocado chateada. Discutimos e fui para casa do meu pai.

A ida à missa não era apenas uma questão de fé. Era uma forma de afirmação. Se calhar não foi mais do que isso. Mas a convicção que tinha acabou por ser transportada para o comunismo. Porque o comunismo não é mais do que uma religião laica.

O que queres dizer? Tem tudo o que tem uma religião: santos (Marx, Engels e Lenine), Papas, bispos e festas religiosas populares. A Festa do "Avante!" não é outra coisa senão uma grande reconstrução laica de uma cerimónia de grande tradição popular.

Estás aqui, estás a dizer que o PC é uma grande seita... Não. Mas quando vês o discurso do secretário-geral, às seis da tarde, no grande palco da Festa do "Avante!", aquela construção, as filas dos dirigentes, toda aquela representação de espetáculo tem que ver com a tradição das grandes encenações religiosas.

Sentias ou vês isso agora? Quando aderi ao PC transferi de Deus para o homem a mesmíssima crença e a mesmíssima promessa.

Não é contraditório com dizeres que foste para o comunismo pela via intelectual? Em que é que a fé contesta a racionalidade?

Não era assim que o comunismo a via... Mas eu não estou a falar segundo a "Vulgata"! O que a tradição judaico-cristã transmitiu a toda a cultura europeia vai até ao comunismo: a promessa da felicidade na terra!

É uma releitura da tua vida. Oque parecia ser um corte é uma continuação? Tenho muito cuidado para não fazer reescritas. Estou a fazer uma reinterpretação. Procuro racionalizar essa passagem feita por uma via de humanismo radical. Tanto quanto é possível aos 12 anos. Quando se lê "Por Que Não Sou Cristão" do Bertrand Russel com essa idade...

Quem te deu esses livros? Estavam na biblioteca do Afonso. Depois, li "O Que é a Propriedade", do Proudhon. É a bíblia do anarquismo e o primeiro livro de economia que li.

Com 12 anos? Esse ainda é fácil! Mesmo os "Princípios da Filosofia" ou "Processo Histórico", de Juan Clemente Zamora, ainda foram. O problema começa com a "Introdução ao Capital" e a "Contribuição para a Crítica da Economia Política", ou um muito pior do Lenine, o "Materialismo e o Empiriocriticismo". Não passei da pág. 18. Ainda bem.

Mas isso não é... ...normal? Não, não é. Nem é a regra!

Os teus pais separam-se quando tinhas que idade? Talvez uns nove anos. E o meu irmão teria uns quatro.

Isso marcou-te? Seguramente. Somos uma família um pouco estranha. Em termos públicos, até parece que não há pai, só os irmãos e a mãe. O pai desapareceu.

Depois da separação, ficas a viver com a tua mãe até que foges... Sim. E decido que quero ir para um liceu de pobres e deixar o São João de Brito. Vou para o Passos Manuel e entro no mundo do associativismo estudantil. Faço a puberdade e entro na adolescência de forma vertiginosa.

Estás a dizer que queres ir para um liceu de pobres porque és muito católico? Eu sou de esquerda porque a minha mãe me proibia de deixar comida no prato, porque tinha de dar aos pobres a melhor prenda que recebia no Natal. Fui habituado à renúncia. E também sou de esquerda porque fui sempre um filho difícil, habituado a dizer não. O meu processo de afirmação foi contra. Desde muito novo que tinha uma relação dura com a família. Não fui um filho fácil com a minha mãe.

E com o teu pai? O pai é sempre o tipo porreiro e pouco presente em comparação com a mãe. O porreiro da casa é o pai. E quem manda é a mãe.

Ainda discutes muito com a tua mãe? Não, evito. Desaprendi de discutir. Talvez por termos maneiras de ser bastante próximas, a relação foi sempre dolorosa. A primeira vez que cortei relações com a minha mãe estava no 4º ano do liceu. Mas ela cortou muito mais vezes do que eu. Diz que lhe prometei um tribunal revolucionário para a julgar, mas parece-me excessivo. Não foi ao meu casamento porque achava que eu não estava preparado e tinha razão. Embora tenha oferecido a casa para o beberete.

Em adulto ainda se mantém essa tensão? A última vez que a vi zanguei-me. É melhor vermo-nos em doses homeopáticas. Fora isso, gostamos muito um do outro.

Foste duro com a tua mãe? Reconheço que fui, mas ela nunca foi leve. Tinha uma interpretação muito própria do seu papel e creio que eu também do que era o meu! Não deve ter sido simples para nenhuma das partes.

E o teu pai? Aprendi coisas diferentes: a gostar de jazz, de urbanismo. E aprendi muito a pensar, a pôr perguntas. O meu pai dava espaço a tudo, desde que eu passasse de ano.

E passaste? Nunca chumbei. Na faculdade é que interrompi e demorei dez anos (dois planos quinquenais!) a fazer um curso de cinco. Mas porque fui trabalhar, fiz tropa, outras coisas. O meu pai, um dia disse-me: "Já viste que estás a falar como o Cunhal?" E tinha razão. Todos os comunistas, a certa altura, falavam num tom às curvinhas e baixinho. Era uma música de igreja. Como os padres, que falam todos da mesma maneira.

Estás sempre a comparar o PC com a Igreja. Tu eras o quê, acólito? Fui um bom militante. E acho que fui quase tão complicado para o partido como fui para a minha mãe! Num dos momentos de crise, fui protestar com o Ângelo Veloso e ele disse-me: "O teu problema é que és um católico não praticante!" Respondi: "Quando os padres fecham as portas da igreja o que queres tu que eu seja?"

Hoje, és ateu? Sou ateu não militante. Tenho um enorme respeito pela racionalidade que há no fenómeno religioso. Umas semanas antes da Maria de Lourdes Pintasilgo morrer, tivemos uma longa conversa. Ela dizia-se crente, não tanto por acreditar em Deus, mas porque precisava de falar com ela própria, através de outra figura. A brincar disse-lhe: "Se calhar é de um psicólogo que tu precisas." Eu não tenho essa necessidade. Devo ter tido quando era muito novo, porque acreditava que Ele fazia milagres. E acreditei no homem como o redentor.

Agora estás em que ponto? O meu único objetivo de vida é modestíssimo: não faço a menor ideia se aquilo que eu defendo vai fazer caminho, ou não. O socialismo ou o comunismo não são nenhum destino. Pelo que a gente vê, até é pouco provável que aconteça... Acho que a Humanidade está mais próxima de se destruir do que de construir um amanhã que canta. Não está nada escrito. Mas há uma coisa que sei: ao chegar ao fim da vida, quero poder olhar para trás e dizer: terei feito algumas asneiras, mas no conjunto posso partir, lá para onde for, com tranquilidade.

Tens 53 anos. Estás a pensar assim porque tiveste uma doença grave?
Já pensava assim muito antes. Acho que fiz coisas de que genericamente não me arrependo. Até posso levar alguns pequenos orgulhos. Mas a minha vida valeu a pena, no sentido em que foi interessante para outros. Isto não foi uma missão, é só um ato de derradeiro egoísmo. É da pessoa querer saber como parte: de cara lavada ou de cara pintada. Prefiro de cara lavada.
Os teus dois filhos mudaram a tua vida? Nunca fui um bom pai. Apesar disso, os meus filhos gostam de mim.

Em que sentido? Nunca fui presente, atento. Fui fundamentalmente um pai ausente.

Porque não querias, não tinhas paciência, não podias? Há uma primeira parte complicada, quando eles são muito pequenos. Quando começaram a interagir, ambos acabaram por ter um pai ausente, por razões políticas, profissionais, porque sempre tive uma vida muito ocupada.

Mas também conseguiste articular muitas coisas ao mesmo tempo. Significa que devia ter posto muito mais vezes a vida privada como prioridade e nunca o fiz. Ou melhor, estou agora, com atraso, a tentar recuperar.

Achas que tem a ver com o modelo que tiveste? Tem mais a ver com essa segunda família, o comunismo. As 'grandes causas' são um espantoso conforto para não se olhar para dentro e para se fugir de si próprio. Isto não é fácil de dizer, mas é inteiramente assim. Ou seja, a dedicação completa a uma causa é muitas vezes a contraparte de uma enorme dificuldade em conseguir viver os detalhes.

Nomeadamente a vida afetiva? Sim. Eu queria ser um soldado da 'grande causa'. Quando era novo o meu objetivo era ganhar o suficiente para poder ser revolucionário todos os minutos da minha vida.

Arrependes-te dos sacrifícios que isso implicou para os teus filhos? Quem diz que não se arrepende de nada é parvo, ou santo, logo se vê. Também é bem feito porque nunca saberão (risos). É obvio que me arrependo de coisas. Acho que nunca soube equilibrar algumas coisas. Os meus filhos são a principal.

O André, o mais velho, já vive contigo em Bruxelas? E a partir de setembro virá o segundo, o Frederico.

Que tipo de pai és? Imponho alguns limites.

Castigas? Fico chateado. E ele não sai dali enquanto não lavar a loiça, por exemplo. Não é um castigo, é fazer o que tem de fazer.

Alguma vez bateste nos teus filhos? Duas ou três vezes, no máximo. Sou tolerante, mas exijo responsabilidade. Outro dia, em plena campanha eleitoral, descobri que o meu filho mais novo fumava.

Tu que fumavas desde... Os 12! Não tinha argumentos. Mas tenho cancro no pulmão e o meu filho podia ter pensado um pouco. Ele andou anos a azucrinar-me a cabeça para eu não fumar! O problema é que eu falhei algumas promessas. Comportei-me como um político e ele atirou-me isso à cara. Fizemos um acordo: eu furo a orelha se ele deixar de fumar. Ele pediu para esperar até final de julho. Vamos ver...

Como é que reagirias se um dos teus filhos não gostasse de política? O mais velho interessou-se agora. O mais novo começou a perguntar-me quais eram as diferenças entre o comunismo e o capitalismo...

E nunca te perguntaram o que era isso de ser de esquerda?Digo-lhes que o que distingue a esquerda da direita não é uns serem pelos pobres e os outros contra. Não posso dizer que o tio Paulo é um malandro! Está é firmemente convencido de que é preciso que haja ricos suficientes para que depois possa haver menos pobres. Eu, pelo contrário, acho que é preciso tirar algum dinheiro aos ricos para acabar com a pobreza.

Tu e o teu irmão são um bom exemplo das diferenças entre esquerda e direita? Pertencemos a espectros políticos opostos, mas com a grande virtude de terem propostas claras. Não é um debate de batota, são partidos de pendor ideológico. O CDS, PSD e PS acham que a sociedade precisa de ser melhorada, o Bloco e o PC acham que ela precisa de ser transformada. A partir daqui, tudo é mais subtil. Quando o Bloco nasceu, eu dizia que nos tempos que correm ser social-democrata já é ser um grande revolucionário.

O Bloco é muito diferente do que era no seu início. Foi sempre construído sobre duas pernas: combinar um tema de ambição maioritária imediata (a reforma fiscal foi o primeiro) e concertar com outros ditos fraturantes, em que o primeiro foram as drogas. Até fiquei conhecido como o 'Miguelinho dos charros' por ter ido distribuir 'mortalhas' para o Bairro Alto. Fizemos o mesmo com o aborto, depois com o casamento gay e faremos com a eutanásia: transformar um tema minoritário num tema social suscetível de mudar a sociedade.

As questões fraturantes não tornaram o Bloco refém? Não, a crise relegou para um lugar tão terciário os chamados temas de comportamento que deixámos praticamente de falar deles. Os anos de maior consolidação do Bloco são os da crise, 2007/2008.

Aí a perceção da crise ainda não existia. É quando ela estala e quem a pagou foram os desempregados. Nessa fase, o culpado era tão óbvio, que as pessoas estavam recetivas ao discurso do Bloco de que a banca devia ser penalizada. Pela primeira vez conseguimos ganhar a batalha ideológica de que os inimigos da classe média não eram os imigrantes, os pretos, ou lá quem seja, mas os banqueiros. É a resposta à crise que nos dá o resultado dos 10%. O que é que isto tem de fraturante? Há uma ideia feita sobre o BE. De quem nos vaticinou um fim à vista e que nos viu não só ter sucesso como ter ambição de Governo.

Dizes tu agora! Dissemos desde o princípio.

Mas quando vos propuseram, recusaram. Também se te oferecem veneno tens o direito de recusar, não? Não é uma ambição de Governo em abstrato é uma ambição para aplicar uma política!

Para quando forem maioritários? Não tem de ser! Tal como as coisas estão, não temos condições de ter um Governo influenciado pela esquerda. Seria sempre fortemente limitado pela teoria da 'soberania limitada' do Brejnev aplicada à União Europeia. É preciso encontrar outra solução de Governo.
Com o PS? Isto não passa pelo PS que temos, porque está sequestrado pelo memorando. Mas passa por uma tentativa de tirar o mais depressa possível o PS dessa lógica.

O BE dá uma imagem de partido de Governo? Nunca foi verdadeiramente confrontado com essa situação. É um problema de quadratura do círculo: um Governo de esquerda precisa de uma maioria, e ou isto se faz sobre os escombros do PS, ou é o PS que pressionado pelas circunstâncias faz essa viragem. Nós temos de ser uma parte da solução de Governo, o que implica alianças ou um quadro recomposto da esquerda portuguesa, que é a nossa aposta de sempre. O Bloco é um instrumento, não único, dessa recomposição.

Nestas eleições, parte dos descontentes de esquerda voltaram ao PS... Nem nós nem o PS somos donos desses eleitores. O problema destas eleições não teve a ver com a qualidade da proposta política do BE - foi a mais sólida em 13 anos e, paradoxalmente, a mais moderada. A dificuldade não foi explicar porquê votar no Bloco, mas sim 'para quê'.

Se nem sequer reuniram com a troika. O Bloco não reuniu porque não quis! Foi um clamoroso erro. O nosso programa eleitoral era bom, mas não tinha como ser transformada em realidade. O resgate financeiro criou um contexto que transformou os temores das pessoas em inevitabilidades: ele era necessário para ter salários em junho, ou subsídio de férias.

Estás a desculpar o Bloco. Isso não aconteceu ao PC. Não é agradável a resposta: é a diferença entre um partido com 90 anos e outro com 13. O PC depende de um voto que é familiar, que tem gerações, regiões, Câmaras e sindicatos. E já perdeu muito, já teve mais de um milhão de votos! A certa altura está de tal maneira no osso.

E os 5% não são o vosso osso? Há essa hipótese. Mas o Bloco não tem eleitorado consolidado. Diria que os 5% não são o nosso núcleo duro, ele é ainda mais baixo.

Faz sentido um partido tão pequeno querer ser o pilar da recomposição da esquerda? E onde estava o CDS há dez anos? Não era o partido do táxi? Não está hoje como o mais respeitável parceiro do Governo? Não há nada escrito.

E quanto ao Bloco? Quando se tem uma grande derrota, como foi o caso, a tendência mais imediata é para o enconchamento. É uma tendência inevitável que decorre da lei da perda. Outro ponto de vista, mais difícil, é dizer que perdemos num caminho, mas ele tem de continuar a ser tentado. Para mim, o caminho continua a ser o da reconstrução da esquerda, popular, que valha 20% para cima.

O Bloco pode crescer com os mesmos fundadores? Um partido de esquerda a sério é um coletivo. Os quatro fundadores têm uma enorme autoridade, mas temos de fazer uma análise sem vacas sagradas, nem tabus. Eu quero que todos nós quatro saiamos, mantendo-nos úteis a um projecto político.

Qual é o horizonte da saída? Um ano e meio, dois anos.

Há gente para vos substituir? Há, o Bloco tem rostos e outras soluções de direção. Não há só o rei morto, rei posto. Podem jogar-se soluções funcionando com vários rostos. O que não é reproduzível no futuro é o modo como nós os quatro dirigimos o Bloco, nem o tipo de legitimidade que tínhamos e que nos permitiu fazer uma espécie de democracia iluminada. Os velhos devem ter o cuidado de não querer tutelar um processo de geração.

E como se faz? A questão-chave é saber se fica um partido que vive de correntes ou, pelo contrário, se se constrói pela base como um projeto unitário de descorrentização. A situação exige um Bloco com assinaláveis diferenças relativamente ao que era, a política de alianças tem de ser reconsiderada.

Com o PC, PS? E com independentes. Até agora o Bloco procurou sempre crescer à custa do PS. Essa competição não desapareceu, mas interessa-lhe que o PS continue sequestrado pelo Governo de direita no Parlamento? A tática do BE tem de ser a de confrontar permanentemente o elo fraco desse campo, entre os compromissos que o PS assumiu com o memorando e as expectativas da sua base de apoio. O BE tem de ter a inteligência de o fazer bem feito. Vamos precisar de muito povo na rua e de lhe dar esperança.

O vosso alvo vai ser o PS? O nosso alvo é o Governo! O meu problema é saber como debilito a sua política tão rápido quanto possível. O elo fraco do sistema de poder é o PS.

Saíste da Comissão Política do Bloco, acabou o teu sonho da recomposição da esquerda? Não desisti de nada. Não me demiti de pensar, nem de escrever, nem de ajudar. De qualquer modo serei deputado.

A doença mudou alguma coisa? A noção da precariedade da vida.

Não estavas à espera... Foi mero acaso. Aí percebi que muita gente tinha cancro, que isto é uma enorme cooperativa. A segunda coisa que aprendi foi que quando se tem cancro uma vez, tem-se para sempre. Entre as coisas que podemos fazer para o fintar é tornar o nosso modo de vida menos stressante.

Mudou o que tinhas estabelecido? Para ser inteiramente franco, não. Mas como a vida se torna mais curta na nossa cabeça, mesmo que se possa viver com cancro a vida inteira, acelera algum tipo de balanço de vida.

Tens a preocupação de deixar um legado? Só para mim: gostar de cá ter estado, porque procurei ser um tipo decente, com algumas asneiras até, mas que fiz algo com que me posso sentir bem. O legado político, de algum modo, é o Bloco.

Sentes necessidade de reparar erros? Admito que tenha algo disso com os meus filhos.
Mas na prática ninguém se reaproxima dos filhos para compensar o tempo que não esteve com eles. Reaproxima-se para ver se está algum tempo com eles.
A possibilidade da morte aproximou-te do teu passado religioso? Nem um bocadinho.

Mas tens um sentido de missão muito grande... Tenho, não é preciso ser religioso para isso. Ficou-me, obviamente, do cristianismo e do comunismo. E não é defeito, é feitio, quer dizer, depende das vítimas.

A doença aproximou-te da tua família? A minha mãe disse que tinha percebido que, afinal, não tinha uma família, mas duas. A gente do Bloco que me ia ver, e a família, os amigos. E entre as pessoas que sentiram muito o meu cancro estiveram, obviamente, o meu irmão e a minha irmã.

Também te ensinou a perceber quais são as pessoas fundamentais da tua vida? O meu irmão já era. Mas fiquei mais próximo e, se calhar, ele até ficou muito mais próximo de mim. Foi um apoio forte.

Houve situações de conflito de interesse com o teu irmão? Quando o Bloco fez dos submarinos arma de ataque, ou quando Louçã usou contra o teu irmão o argumento de que ele não tinha filhos... Louçã sabe que não esteve bem e acabou por o dizer. Não foi um momento cómodo para mim. É diferente a questão dos submarinos: a minha posição política é a do Bloco, mas evitei sempre ser eu a levantar essa bandeira.

No caso dos submarinos entram questões do foro da honestidade. Num mercado como esse, a disputa das empresas pela venda do seu material envolve sempre luvas. Não tenho dúvidas sobre isso, mas nada me indica que o meu irmão tenha sido recetor. Tem de ser tudo investigado e tiradas todas as conclusões, esteja, ou não, envolvido o meu irmão.

E se estiver? Incomodar-me-á. Acho que o conheço o suficiente. Nunca lhe perguntei se recebeu luvas, como é evidente. Era o que mais faltava!

Telefonaste-lhe a dar os parabéns nas eleições? Claro! Ele fez uma grande campanha, não cometeu erros e só aumentou 1%! A direita tem um grau de ingratidão absolutamente extraordinário!

Está a falar o Bloco ou o irmão? Está a falar o irmão. E o jornalista objetivo.
Vocês conversam? Como é evidente! Trocamos impressões e às vezes temos conivências surpreendentes sobre matérias de que ninguém suspeitaria!

Ficaste contente por ele chegar a ministro? Não acho que chegar a ministro seja prémio para ninguém. Se alguém pensa que sim, acho que pode ter ideias sobre a sua vida um pouco mais interessantes.

Mas há quem ache. É uma das razões pelas quais não temos tido governos brilhantes.

Era uma coisa pela qual o teu irmão lutou. Não fico contente por o meu irmão ir para um Governo que eu vou combater. Mas ele tem um nível de obsessão pela política muito superior ao meu. A razão pela qual tenho de escrever livros é exactamente para evitar a carga de droga dura que a política traz.

Estás a 'desintoxicar'? Sempre o fiz. Não se está na política ao nível da representação sem se gostar do palco. Eu tenho mais medo dele do que gosto do palco. Transfigura as pessoas e raramente para melhor.

Mas a política não é a mais nobre das profissões? E é também um enorme exercício de poder. Para quem não tem consciência disso, transforma-se numa tragédia.

Achas que o teu irmão não tem? Penso que tem a lucidez de saber que a política não é um mundo de virtudes.

Achas que ele vai ser um bom ministro? Os ministros dos Negócios Estrangeiros são sempre os mais poupados.

E já mudou de tom na conversa contigo? Não quero comentar. Vamos trabalhar nas mesmas áreas. Ele vem do euroceticismo para um europeísmo condenado e eu, que sempre fui convictamente europeísta, sou hoje muito mais cético do que quando entrei no Parlamento Europeu há sete anos. Os valores proclamados contam tão pouco que é muito difícil não se ter uma enorme deceção.

Com 27, é sempre complicado... Estamos no fim de um ciclo em que os ultraconservadores do Norte decidiam a política e os socialistas do Sul executavam-na. Isto só acaba com o esmagamento do Sul e dos partidos socialistas no Sul.

Ainda não chegámos ao fundo? A Europa tem larguíssima responsabilidade no tipo de soluções encontradas, invariavelmente tardias. E quando toma a decisão, já está desajustada das necessidades. É uma permanente corrida atrás das realidades.

A Europa pode acabar? Pode, basta que a crise que se abata sobre ela seja superior às suas forças. Temos uma enorme crise de qualidade de lideranças e do ponto de vista económico a Europa é mais ultraliberal do que os EUA. Percebe-se no Parlamento Europeu a violência do conflito ideológico, ao mesmo tempo que cresce a olhos vistos o ceticismo e mecanismos de egoísmo social brutais.

Como eurodeputado sentes-te a falar para o boneco? Coloquei-me muitas vezes essa pergunta. Há alturas em que me sinto absolutamente inútil, mas noutras sinto que conto.



"A primeira vez, andava eu no 4.º ano do liceu, no Pedro Nunes. Eu e um amigo organizámos uma greve de silêncio de uma semana a dois professores, uma coisa terrível, que exige um grau de consciência e obediência absolutas. O professor diz "Bom dia!" E a turma nada. "Que foi, perdeste a língua?" Nada. A turma cumpriu, nem um furou. No fim, o meu amigo foi expulso e eu não, porque a minha mãe foi lá pedir. Não lhe falei durante quase meio ano. Achei intolerável que eu tivesse sido beneficiado por uma cunha miserável!"
"Foi na sede antiga, na António Serpa, estava eu à espera de um camarada e vejo-o vir, com o Octávio Pato, que eu já conhecia. O Cunhal cumprimenta-me e eu trato-o por você: "Muito prazer em conhecê-lo." E responde ele: "Entre camaradas tratamo-nos por tu!" Estive para não lavar as mãos durante três semanas! Era uma das formas do Cunhal para dominar a mente da rapaziada; era de uma arrogância psicológica!"
"Foi em 1999, já ele estava doente e semirretirado do partido. Fiz um trabalho sobre o Melo Antunes, revelando que ele e o Cunhal se tinham encontrado os dois antes do 25 de novembro. Precisava da confirmação dele. Eu não estava à espera, mas ele recebeu-me. Esta malta que trabalha para a História gosta sempre de deixar as coisas em pratos limpos. Não desconfirmou e pude publicar."
"Teve a ver com a minha saída da organização, quando fui para a tropa. Era costume nessas condições o camarada presidir a uma sessão - a minha foi de um Congresso do Ensino Superior. A malta combinou apresentar uma moção a favor da legalização do aborto e assim foi. O Cunhal, ali presente, 'piurso', aquilo afetava a Igreja e não podia ser. No fim, foi aprovada esmagadoramente a favor com apenas quatro votos contra: o do Pina Moura e os que eram do Comité Central. Foi de tal modo que quando o Pina se aproximou do Guterres até me telefonou a confirmar a história. Mas o Cunhal, que no final da conferência se fartou de zurzir na malta, três meses depois lançou a Zita Seabra na Assembleia com a legislação sobre o aborto. Ele percebeu que a mudança era tão evidente que mais valia surfar a onda. Foi a primeira vez que o PC abordou um tema fraturante."
"O processo da Casa Pia é complicado, resulta de uma aliança de interesses. Não foi só o Ferro Rodrigues que esteve entre as fotos, o Louçã também. Esteve um ano em todas as fotografias e inquéritos, até ao momento em que decidiram que o alvo seria só um, o PS. O Louçã revelou-nos isso (à direção do Bloco) quase no fim: a alternativa era ou ele saía ou eles desistiam. Desistiram."
"Fizemos um debate público na televisão, éramos ambos candidatos à Câmara de Lisboa. Tínhamos de fazer uma discussão séria e não simulada, sem tentar esmagar o outro, embora o que toda a gente quisesse era ver sangue na família, Falámos antes e combinámos que os temas centrais seriam a polícia e a droga. Às tantas estava ele a defender que queria mais polícias e eu a sustentar que eram precisos menos ladrões!"
Texto publicado na revista Única de 23 de julho de 2011


Fonte -  Expresso