22 fevereiro 2017

António Lobo Antunes




Fechado “na sua torre de livros”, com duas pilhas de manuscritos em cima da secretária, e novos capítulos a nascerem laboriosamente, naquela letra embrionária e ínfima, António Lobo Antunes iniciou esta longa conversa anunciando o fim. Não é que já não o tivesse feito antes. Levado, como também agora, pelo medo, o terror, de repetir-se... Com Harvard no encalce, e as traduções a sucederem-se em línguas tão distantes como o coreano, António-escritor falou provavelmente menos de livros do que de emoções. A morte do irmão Pedro, ocorrida há alguns anos, no preciso dia desta conversa, e a perda do seu irmão João em outubro de 2016 fez com que sobressaísse o António-menino, cicerone da sua infância e dos seus amores.
Porque não foi ver o filme “Cartas da Guerra”?
Não quero ver. Vou-me emocionar. Vi um trailerzito que a Zezinha [a filha mais velha] me mostrou no telemóvel, comecei a chorar. E de certeza que não é como aquilo lá se passava, não foi no mesmo sítio. A coragem daqueles rapazes... Eram uns miúdos. Eram extraordinários. O maior orgulho da minha vida é ter o amor deles. E eu era bonito que me fartava, bolas! As mulheres da idade da minha mãe metiam conversa comigo na rua. Era um assédio! Agora sou um monstro.

Ainda agora [antes da entrevista começar] se queixava de não conseguir almoçar num restaurante sem ser incomodado...
Bom, não muda muito [risos].

Mas deixou de aparecer, de dar entrevistas, de promover os livros...
E também deixei de viajar. Não tenho saído para o estrangeiro. Vêm os convites e não vou. Sabe, eu só vou escrever mais dois livros. Está completamente decidido na minha cabeça. Vou acabar este e fazer outros dois. Quero acabar em 2020. Fica um número redondo.

Como fica redondo se começou a publicar em 1979?
Tenho mais dois livros. O que está pronto chama-se “A Última Porta Antes da Noite”. E há outro em que uso no título uma frase do Chandler: “Qualquer Coisa Mais Que a Noite”. Gosto muito do Chandler. Ele escreve: “A rua estava escura de qualquer coisa mais que a noite.” Esta frase faz-me sonhar. Às vezes penso como Verdi. Aos 82 anos disseram-lhe: “Porque é que não escreve a sua autobiografia?” E ele respondeu: “Já levei 60 anos a maçar as pessoas com a minha música, e agora vou maçá-los com a minha escrita?” Já é muito livro, não é? É uma obra bastante extensa, apesar de tudo.

E é uma obra muito autobiográfica...
São todas. Não sei qual era o escritor que dizia: todos os livros são autobiográficos, sobretudo “As Viagens de Gulliver”. Acaba-se a falar só de si mesmo, porque não há mais nada, mais material aonde ir buscar, a não ser a si mesmo. Todos os livros são autobiográficos. Acabamos por só falar daquilo que, no fundo, conhecemos.

Porque é que insiste nessa data? Até já a escreveu numa crónica...
Se eu acabar em 2020 ainda não estou xexé. Se acabar agora este “Até Que as Pedras Sejam Mais Leves Que a Água”.

De onde vem este título?
Esse apareceu-me na cabeça. Todo esse material dou a um americano de Harvard [Jeff Love] que está aqui durante três anos só para olhar para mim.

Está a estudá-lo?
Sim. É professor catedrático.

O que ele faz? Conversa consigo?
Nem isso. Vê-me trabalhar, pede-me para ler estas versões [aponta para um monte de folhas]. Fica tudo riscadinho...

Nessas letrinhas tão minúsculas?
Não. Depois passo a limpo para folhas A4 [numa letra maior]. Faço uma data de versões. Os meus pais não queriam que eu escrevesse. Arranjei estes blocos [A5] do hospital para escrever com um livro de História aberto [ainda escreve]. Se ouvisse passos mudava as páginas. Tinha a certeza de que se trabalhasse, trabalhasse, trabalhasse... Escrever é uma questão de trabalho. Comecei por perceber que estas folhinhas [onde escreve] valiam muita massa quando estava na Transilvânia. Havia uma feira do livro, e apareceu-me uma senhora com uma destas folhas. Perguntei-lhe: “Mas onde é que a senhora arranjou isto?” “Num leilão.” Como é que aquilo foi parar à Roménia? Eu dava capítulos inteiros a amigos. É como dar um quadro a amigo e ele ir vendê-lo.

Descobriu qual era o amigo?
Não. Pensei: “Bolas, que importante que eu sou.” Um leilão na Transilvânia!

E nunca pegou no computador?
Não, não sou capaz, ainda tentei em miúdo com a máquina de escrever do meu avô.

Usa dicionários?
Não, não tenho. Para quê? Todos esses livros que vê em cima da mesa são do americano.

E a presença dele não o incomoda?
Não. Ele está calado. Eu também. Estou a escrever. Ele também. Depois almoçamos juntos. É agradável. Estava sempre aqui sozinho.

Onde é que o conheceu?
Conheci-o em Nova Iorque. Pensava que ele pertencia à editora. Ele tinha vindo da Carolina do Sul para me conhecer. Eu ia dar uma entrevista na Public Library. Eu e o Mike Tyson, que é inteligente que se farta, um desportista...

Ainda lhe passa pela cabeça fazer um livro sobre boxe...
Às vezes passa-me. Gostava muito de boxe. Jogava boxe.

A sério?
A sério não. Se levasse um murro deles... Treinava! O boxe é muito bonito. Era uma brincadeira. O meu pai organizava combates de boxe entre nós [irmãos] na casa de banho, com a porta fechada à chave para a minha mãe não entrar... Éramos miúdos. O meu pai dava-nos umas luvas e tinha um despertador para marcar os rounds. Ainda vi jogar o Belarmino. Isso do boxe era uma brincadeira. Eu não era nada de especial, mas não era mau. Joguei hóquei mais a sério, e futebol, quando era miúdo, porque o meu pai tinha sido internacional pelo Benfica, na modalidade de hóquei em patins. Com três anos punha-nos a andar de patins. Por um lado, dava-nos desporto, por outro incutia-nos respeito e admiração por um livro, um autor, um poeta, e ao mesmo tempo o horror à homossexualidade...




Mas o António não tem medo de expressar o amor que tem por outros homens...
Mas os homossexuais não me beijam. O Eugénio [de Andrade] nunca me deu um beijo. Era uma altura em que aquilo era muito escondido. Não sei muito bem. Nem nunca fui assediado. Havia homens que se encostavam a nós quando íamos de Benfica até Sebastião da Pedreira. Nunca tive muita sorte.

E com as mulheres?
Mulheres nunca tive muitas.... Ter nunca temos, podemos ter estado.

Depois do amor não fica nada?
Os gregos diziam que depois do amor todo o macho é triste menos o galo. Já viu como os machos se afastam logo. Até os homens se levantam logo com desculpas várias... E as mulheres querem ficar abraçadas. Uma relação monogâmica é uma coisa muito boa. Deixa de haver mentiras. Nós, homens, não sabemos mentir. Dizemos uma coisa e passados 15 dias dizemos outra completamente diferente, porque entretanto já nos esquecemos. Mas elas não se esqueceram. O meu avô foi apaixonado pela mulher toda a vida. Deve ser tão bom, tão bom. Um homem sozinho não pode ser feliz.

E uma mulher pode?
Pode. São muito mais fortes do que os homens. Aguentam muito melhor a solidão. São mais corajosas diante da doença. Vi isso quando estava a fazer quimioterapia.

Nunca viveu sozinho?
Então, não vivi! Quando me separei da Zé [primeira mulher] estive seis anos sozinho. É mau. É mau entrar numa casa e ouvir o eco da nossa tosse. Todos os homens têm muita dificuldade em estar sozinhos... Não é? Se eu escrever muito estou ocupado.

Se escrever já pode estar sozinho?
Não vou a bares. Nunca apanhei uma bebedeira na vida, nunca tomei drogas. Acho que sou como o Obélix, caí no caldeirão quando era pequeno. Agora penso: “Se deixo de escrever o que é que faço?” Ponho-me a ler... Leio oito horas por dia. Ao fim de uma semana estou farto de ler. O que é que eu vou fazer?

Por isso é que não vai deixar de escrever em 2020...
Isto é muito difícil. Isto chupa tudo. Chupa tudo. E depois se me começo a repetir? Se calhar já me repito agora e não me dou conta... Gostava de fazer poesia mas não tenho talento.

E se tentar todos os dias?
Não tenho talento. Quando a Zé morreu [de cancro] fiz um soneto para pôr lá no cemitério da aldeia. Eu não sou poeta: “Não sou grande espingarda na alegria / e quanto à vida estamos conversados: / no tempo em que de amor viver soía / soía eu em Angola com os soldados. / Depois andei aí por outros lados / a espiar-te de longe e não sabia / que o tempo em que de amor viver soía / eram minutos poucos e contados. / Tinhas pescoço alto: não tens nada; / uns anéis no caixão em Abrigada / o restolhar do vento pela serra. / Ao tempo que isto foi: / não faz sentido / tentar ouvir-te, querer falar contigo / como se houvesse sílabas de terra.” Dei às miúdas para pôr numa lápide em Abrigada.

O cancro é horrível...
E vai continuar a ser. Segundo os oncologistas, vai haver cada vez mais. Mas os resultados são cada vez melhores e as sobrevidas são cada vez maiores. O João tinha um cancro na pele. Era um sinalzinho, de dois milímetros, e foi muito difícil. Desde os 18 anos que a Zé tinha uma fé em mim. Oxalá não a tenha desiludido! Onde estiver há de poder ler-me, como diz um homem de que gosto muito, o Frei Bento Domingues. Eu digo ao Bento: “Depois morro e o que é que eu faço?” “Continuas a escrever.” “E quem é que lê?” “Descansa que leem.” Tenho de acreditar nele, ele é tão íntimo de Deus que tem de saber essas coisas.

Essa conversa de que vai deixar de escrever já tem no mínimo dez anos...
Tenho muito medo de começar a repetir-me. É inevitável. O Simenon tinha razão. Aos 70 anos partiu o lápis. Foi um grande escritor e foi mal avaliado. Os últimos livros de Tolstói... Tenho medo de escrever porcarias. De não ter sentido crítico. Os escritores que vivem muito tempo começam a fazer porcarias e não percebem... tenho medo que me aconteça isso. A crítica tem sido generosa em todo o mundo. Quando publiquei “Os Cus de Judas”, recebi a carta de um agente norte-americano, Thomas Colchie. Pensei que era brincadeira: “Vais conquistar o mundo.” Eu dizia: “Não vou nada.” Porque ninguém queria os meus livros em parte nenhuma. Um dia ele disse: “Vem cá, a Random House vai publicar.” E eu fui todo contentinho. Fui recebido pelo editor num edifício enorme. Perguntei-lhe o que achou do livro. “Não li.” “Se não leu porque vai publicar o livro?”, perguntei-lhe. E ele respondeu-me: “Porque se for mau não compro mais nenhum livro a este agente.” Tivemos a sorte de ter [recensões] no “The New York Times”, no “Washington Post”, no “Los Angeles Times” e no “Chicago Tribune”. Quem tem estes quatro jornais tem o mundo. Dos países onde não me queriam publicar começaram a aparecer pedidos de traduções. Foi sorte.

Ou talento?
Ter uma crítica na primeira página do “The New York Times”, escrita pelo Ariel Dorfman foi sorte.

Também foi sorte o livro ter chegado a Nova Iorque através de um brasileiro...
Sim, o Márcio Souza. Era um homem de Manaus da minha idade, que estava traduzido nos EUA, e tinha muito sucesso. Foi Maria Helena Mira Mateus, professora de Letras, que lhe deu o livro. Ele foi por Nova Iorque e deixou o livro ao agente. Está a ver a generosidade dele?

Voltou a vê-lo?
Sim, ficámos amigos. Foi assim que fiquei com uma série de amigos brasileiros, o João Ubaldo Ribeiro, e sobretudo o Jorge, o Jorge Amado. Era um homem sem inveja nenhuma. Tinha para aí uns vinte Picassos em casa. A filha, Paloma Amado, era afilhada de Picasso, e o filho era afilhado do Pablo Neruda. Estava-me sempre a dar beijos e quando a Zélia, a mulher, dizia alguma coisa, ele respondia: “Gosto de lamber meus filhotes...” Não tinha inveja. Se ele achava que um miúdo era bom apoiava-o. Tenho tantas cartas do Jorge escritas numa máquina velha, todas emendadas à mão... E hoje, quem é que lê o Jorge? Ninguém... Levava porrada no Brasil que se fartava. Nunca o vi amargo. Tinha imensa graça e umas amigas giras, como a Gal Costa. Tudo isso era ótimo! Fizemos uma viagem em França com uma mulher genial que era a Gisèle Freund, a célebre fotógrafa que retratou a Virginia Woolf, o Joyce...

Uma das vezes em que disse que ia deixar de escrever foi antes de ter cancro...
Sabe, eu perguntei ao médico quantas chances tinha. Tinha morrido muita gente conhecida com o mesmo cancro. Disse-me 20 por cento. “Se eu te dissesse 80 só pensavas nos outros 20.” Estava convencido de que ia morrer e mandei levar os papéis... Mal me podia mexer, estava cheio de tubos, algaliado, com fraldas... Fiquei bem. Foi há dez anos. E depois tive mais dois cancros dos pulmões, há uns três anos. A quimioterapia desses dois foi horrível.




Porque não deixou de fumar?
Porque me dá prazer. Estou a lembrar-me de uma frase de Oscar Wilde: “Resista a tudo menos às tentações.” Dá-me prazer. Depois, quando estou a escrever, sem querer fumo. Agora tenho tentado comer chocolates...

O médico não lhe disse para deixar de fumar?
O médico disse. Como dizia o Torga, o destino destina, mas o resto é comigo. O que é que eu posso pedir mais à vida? Podia fazer mais quatro ou cinco livros, e depois? Depois ficam papéis.

Quando decide ser escritor já era para sobreviver à morte?
Não foi uma decisão. Desde que me lembro, desde os 4 ou 5 anos, o que me interessava era escrever. Às vezes tinha um jantar marcado com uma rapariga e acabava por ficar a escrever. Sentia-me culpado quando não escrevia, muito culpado. Depois, parece que os livros foram aparecendo em contínuo.

De onde é que vem essa vontade?
Não sei. Éramos seis irmãos. O Pedro morreu. Hoje é o dia da morte do Pedro.

E do aniversário do Miguel...
Tinha um grande amor pelo Pedro. Muito grande. E a morte do João... Éramos muito unidos. Nos primeiros cinco anos a minha mãe teve quatro filhos. Com oito meses tive uma meningite e estava em coma. Deve ter sido terrível. Era o único filho que eles tinham. O meu pai tinha 26 anos e a minha mãe 24. Ele estava na tropa em Lagos. O bebé entra em coma e eles vêm para Lisboa. De comboio de Lagos para Faro, e de Faro para Lisboa. Demorava-se mais de um dia. Ainda hoje admiro a coragem daqueles dois miúdos. Vieram com um bebé em coma, a morrer, para Santa Marta, que era o hospital no qual o meu pai trabalhava. Ele foi estudar no microscópio, para ver qual era a bactéria, porque ele tinha tido um irmão que tinha tido uma meningite. E foi o meu pai que me fez uma punção lombar. É preciso ter coragem para fazer isto. Nunca dei valor a isto. Demorei muitos anos. Eu estava a morrer, o meu avô, que se chamava António Lobo Antunes, fez uma promessa de me levar a Pádua para fazer a primeira comunhão. É estranho, porque comecei a ficar bom. Ainda hoje tenho uma devoção por Santo António [aponta para uma escultura que tem em cima de um móvel na salinha onde escreve]. E lá fui fazer a comunhão a Pádua quando tinha 7 anos. Portugal, Espanha, França e Itália, de carro... O meu pai e o meu avô à frente e eu ao meio com um volante de plástico. Nunca mais esqueci essa viagem. Obrigavam-me a escrever um diário.

Ainda tem o diário?
Não sei o que lhe aconteceu. Quando estávamos doentes, o meu pai vinha do hospital, sentava-se no nosso quarto, e lia-nos em voz alta os autores de que ele gostava e que achava mais apropriados para nós. Não eram os que me interessavam mais. Por exemplo, quando começava a ler aquele poema do [Manuel] Bandeira, ‘Vou-me Embora Pra Pasárgada’, quando chegava aquela parte “Lá sou amigo do rei / Lá tenho a mulher que eu quero / Na cama que escolherei”, ele não lia. A relação com o meu pai sempre foi muito distante. Mas ele tinha uma fé qualquer em mim que nunca percebi. Não era dito por ele. Ele dizia-o a outras pessoas.

Não era por ser o filho mais velho?
Não. Os meus irmãos davam-lhe muitas mais alegrias. O João só deu alegrias aos meus pais. Foram todos bons alunos. Mais nenhum escrevia. Eu fui muito precoce e, segundo a minha mãe conta, aos dois anos falava espanhol. Aprendi a escrever muito cedo. Foi a minha mãe que nos ensinou a ler a todos. O meu pai começou a dar-me livros para ler, e eu ia lendo. Aos 13 ou 14 anos, ele tinha uma segunda edição de “Mort à Crédit”, do Céline, e eu fiquei deslumbrado. Pensei: “O que se pode fazer com as palavras!” Escrevi uma carta ao Céline a pedir-lhe um retrato, como se ele fosse um ator de cinema. Ele respondeu-me e andei anos com o envelope no bolso, onde ele tinha escrito o meu nome. Foi uma alegria tão grande! Ele a dizer: “Queres ser escritor? Isso não é boa ideia, estuda, namora. Porque se fores escritor não podes fazer mais nada.” Nunca mais me esqueço disto: eu ter escrito uma carta ao Céline e ele ter-me respondido...

Há pouco falámos de hoje ser o dia em que morreu o seu irmão Pedro e o dia em que nasceu o seu irmão Miguel. Quando os nascimentos e as mortes se juntam no mesmo dia...
Sabe, tive três cancros. As coisas a que sobrevivi.... A uma meningite, a uma tuberculose. Estava a fazer quimioterapia. Estava em casa sem forças e o Pedro foi ver-me com a minha mãe e de repente segura-me nos ombros e diz-me com os olhos cheios de lágrimas: “Não me morras! Não me morras!” O Pedro era o mais moreno de todos. Éramos muito unidos. A morte do João custou-me horrores. A coragem dele! Em Benfica, levávamos uma vida bastante isolada, numa casa grande, com jardim... Não me lembro de ter discutido ou brigado com um irmão. Também não houve invejas. Sou eu, depois o João, depois o Pedro, que era o arquiteto, depois o Miguel, que está na Culturgest. É uma joia, a bondade em pessoa. Depois o Nuno, que é médico, e o Manuel, que teve uma carreira fulgurante na União Europeia e agora está em Londres. De todos, o Manuel é o que conheço menos, porque ele era pequeno quando fui para a guerra. Os outros conheço-os bem.

Crescer entre rapazes não criou um grande afastamento das mulheres?
O meu sonho era ter uma irmã. E o deles! Nunca se casaria, que nós não deixávamos [risos]...

Era uma irmã só para vocês?
Claro, e o meu pai também queria ter uma filha. Quando o Nuno nasceu, que era o quinto, o meu pai disse à minha mãe: “Diz tu que é um rapaz, que eu já tenho vergonha.” Ele tinha o sonho de ter uma filha. E eu, pelo menos eu, o de ter uma irmã. Naquela altura, as raparigas não se misturavam com os rapazes. Andámos sempre em escolas do Estado, porque os meus pais não tinham dinheiro para mais. Entrei cedo, com 16 anos, para a faculdade. Aí, de repente, descobri as raparigas. Na cantina universitária havia montes de raparigas de Letras. Mas, depois, eu era tímido, ia com o tabuleiro para o cantinho e virava-me para a parede.

Tinham de ser elas a tomar a iniciativa?
Fingia que não percebia. Era muito tímido. Não estava habituado.

Acaba por conhecer a sua primeira mulher na Praia das Maçãs?
Sim, a Zé. Ela tinha 18 anos. Anunciei-lhe logo que era o maior escritor do mundo! Ela começou a rir-se, claro. Ninguém acreditava nisso. Só eu! Estive 30 anos sem publicar. Pensava: “Ainda não é isto, ainda não é isto, ainda não é isto.” Era de uma teimosia! Fomos viver para um quarto alugado, porque eu não ganhava nada e ela ainda estava na faculdade. Só tínhamos um quarto e uma casa de banho. Ela cozinhava no peitoril da janela. Só havia uma mesa pequenina e ela dizia-me: “Escreve!” Tinha uma fé que nunca partilhei. Só fazia merda. Não era bom, mas sabia que ia fazer coisas do caraças. Era tão mau, tão mau, tão mau. A minha poesia era uma porcaria. A minha prosa era uma porcaria.

É por isso que não gosta das cartas que escreveu na guerra?
Não sei. Não as li, não é por serem más ou boas. Repare, vinha um soldado e dizia vem um avião daqui a 20 minutos. Começávamos todos a escrever.

Não tem coragem?
Tenho medo de me comover. Era uma altura muito violenta, sabe, sofria-se muito ali.

Calculo que não seja só a guerra, há também o fim da vossa relação...
A relação nunca acabou. Quando mandava o cheque por causa das miúdas enviava sempre um bilhete “um beijo do António”. Todos esses papelinhos ficaram guardados. Ela era muito bonita. Inteligente. Tinha o feitio difícil. Mas eu não gosto de pessoas de feitio fácil.

E porque é que não voltou para ela?
Isso é uma coisa que lhe posso dizer a si. Mas não para um jornal.

Muitas mulheres gostariam de ter recebido aquelas cartas...
Aquilo é escrito por um miúdo a uma rapariguinha. Eu quis casar-me porque achava que ia morrer e queria deixar um filho ou uma filha. Estava no quinto ano de Medicina. Tinha uns estágios de Obstetrícia. Uma parteira que lia as mãos disse-me: “Você vai morrer em Angola.” Nunca mais pensei naquilo. Só me lembrei quando soube que ia para Angola. Queria ter um filho porque pensava que assim ia continuar a estar vivo, o que é uma treta. No primeiro mês veio a menstruação. Ia-a matando [risos]... Nunca vi a barriga, e isso é uma coisa que não perdoei.

À guerra?
Ao Governo que havia aqui. Soube que ela tinha nascido por telegrama, letra a letra. Queria um rapaz, porque queria chamar-lhe António, como o meu avô.





Não houve uma época em que gostava de ter tido outro nome?
Quando era pequenino queria ser Sérgio. Mas tenho orgulho de ter o nome do meu avô, que era um homem de grande bondade. Gostou tanto de mim... Estou tão grato por isso. Levar um miúdo a Itália, já viu? Ainda me lembro tão bem de tudo. Os museus é que eram uma chatice, com o meu pai a dar-me explicações enormíssimas, em frente a cada quadro. Depois havia os escarradores. Eu só gostava dos escarradores. Queria lá saber dos quadros! Velázquez? “Meninas”? Queria lá saber. Hoje já não é assim.

No dedicatória de “Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura (2000)” escreve: “Para a Zé, que há de encontrar maneira de ler este livro.” É para a sua ex-mulher, que morreu em 1999...
Eu devo ser parvo, mas acho que as pessoas de quem nós gostámos continuam a ler o que nós escrevemos. O Bento diz que não vai a cemitérios porque não está lá ninguém. Então, onde é que estão as pessoas de quem gosto? Andam por aí. E quantas vezes a gente lhes sente o cheiro e a voz. Nunca lhe aconteceu? E da nossa boca saem frases de pessoas que já cá não estão. Grandes físicos e matemáticos do século XX são todos profundamente crentes e falam sobre Deus. Tem de haver alguma coisa, alguém teve de carregar no botão, como dizia o João...

Ele era crente?
Nunca falámos sobre isso. Nunca se falava sobre Deus. Estou a lembrar-me de um verso do Walt Whitman: “Gosto de animais porque não discutem a existência de Deus.” O meu pai nunca foi a uma igreja, a uma missa. Já no fim da vida, arranjei coragem. Atrevi-me a perguntar-lhe: “O pai acredita em Deus?” E ele, que trabalhava com cérebros, fez um silêncio muito grande. A resposta foi: “O nada não existe na Natureza.” Voltou a calar-se. Aquilo chegou-me.

E o António tem fé ou não tem fé?
Eu acredito em Deus, mas estou sempre zangado com ele. Disse isso ao Bento. Ele respondeu-me: “Ainda bem.” Eu até nem me zango. Sou terno, afetuoso. Mas a fé daquele homem, a alegria dele é extraordinária... É um homem espantoso. Contou-me que disse a missa de corpo presente quando a mãe morreu, e quando voltou à aldeia lá no Minho a primeira frase para o pai ao abrir-lhe a porta foi: “E a mãe?” Ele é um homem muito feliz. “Como é eu posso não ser feliz?”, diz o Bento.

Não é o António que diz que nascemos para a alegria?
Não sou uma pessoa muito alegre. Sou introvertido. Fechado. Cheio de dúvidas. Não me é fácil viver comigo. Parece que estou sempre em guerra civil.

A psiquiatria, que era a sua especialidade, não o ajudou?
Eu queria fazer cirurgia. Tinha boas mãos. O cirurgião tem de ter boa capacidade de decisão. Simplesmente a cirurgia ocupava tudo. Eles não fazem um mês de férias. Fazem uma semana, cinco dias. Treinam as mãos em casa. Um amigo que é oftalmologista treina com fios com uma espessura de um décimo de um cabelo. Tem se operar, operar, para fazer a mão. Isso ia tirar-me tempo. Eu queria escrever. Acabei por ir para psiquiatria, quando vim da guerra, e gostei. Foi por influência de um homem, o João dos Santos, que foi quem introduziu a psiquiatria pediátrica em Portugal. Dava umas sessões aos sábados, às oito de manhã, no Hospital de Santa Maria. E eu, que detesto levantar-me cedo e que não ia às aulas a essa hora, ia às sessões dele. Aparecia um homem qualquer na consulta e ele falava com ele. Como o homem tinha uma loja de brinquedos só falavam de brinquedos. O doente saía e o doutor reconstruía a história daquele homem desde a infância. Estava tudo ali. Pensei, bolas, também quero ser bruxo! Mas ser como o doutor João dos Santos era uma coisa muito difícil. Agora, que lhe dava um certo conhecimento do outro...

A psiquiatria não lhe deu um certo conhecimento de si próprio?
Fiz análise. Ainda andei nove anos naquilo. Depois o gajo não me queria deixar sair de lá, dizendo que eu não me submetia. “Não vejo nenhuma razão para me submeter a si.”

Não aprendeu nada?
Não sei. Algumas coisas. Eu punha muito em questão os pressupostos freudianos. Freud estava a falar dele mesmo.

O passar dos anos não o ajudou a lidar consigo?
Não sei. Tive a sorte de ter amigos muito bons. O meu avô dizia, um homem pode não ter dinheiro, mulher, trabalho. Se tiver amigos não é pobre.

Ainda há portas dentro de si que não abre?
Toda a gente, não? Por uma questão de pudor. O meu pai era um homem de grande pudor e puritanismo e até certo ponto transmitiu isso aos filhos. Acho que todos nós temos isso, embora os meus irmãos, ou alguns deles, tenham fama de ser mulherengos. Não sei. A minha mãe não era terna. Era uma mulher muito inteligente e eu era o filho mais problemático que ela tinha. O meu pai dava a chave de casa aos filhos aos 14 anos e dizia: “Não façam nada de que se possam arrepender.” Nunca dizia, isso é mau. Dizia, isso é estúpido. Dava muito mais resultado.

Ninguém queria parecer estúpido...
E a minha mãe, que era muito inteligente, protestava com ele: “Pois, todo esse investimento na inteligência... Há coisas mais importantes, a bondade, por exemplo.” E é verdade. Tem toda a razão. Toda. Havia uma cadeira de psicologia na faculdade e o professor fez-me os testes. Eu tinha 187 [QI]. Mas isto não quer dizer nada. A minha mãe costumava dizer que não há nada mais estúpido do que um homem inteligente. E tem toda a razão. Toda. A quantidade de coisas estúpidas que fiz ao longo da vida...

Como, por exemplo?
Fui ingrato algumas vezes. Não me perdoo. A ingratidão é uma coisa horrível. Eu estava a escrever “Os Cus de Judas”, na altura em que era interno do professor Eduardo Cortesão, de quem eu gostava muito. Ele tinha uma casa na Praia da Luz e eu ia para lá escrever. Ele ia para a praia com a mulher e eu ficava a escrever. À noite, quando ele voltava, lia-lhe o que tinha escrito. Ele dizia para a mulher francesa: “Marie Claire, estamos a assistir um momento histórico.” Ainda não tinha publicado nada! Fui ingrato com ele. Não me perdoo. Ele fez tudo por mim, deixou-me o consultório cheio. Larguei aquilo para escrever... Depois, o primeiro livro ninguém o queria publicar.

Foi Daniel Sampaio que o entregou ao editor da Vega, Assírio Bacelar...
Sim, depois tivemos umas chatices, por causa de umas edições piratas. O livro saiu numa editora muito pequenina em julho, e em setembro tinha vendido uma loucura. Mas sem aceitação crítica.

O primeiro jornalista a falar consigo foi o Rodrigues da Silva.
Tão bom! O Zé Manel [Rodrigues da Silva] foi toda a vida um menino. Escreveu-me uma carta. Não o conhecia de parte nenhuma. Tinha acabado de comprar o livro numa livraria do Apolo 70. Naquela altura, os livros ainda não eram pagos para estarem nas montras das livrarias. Agora é tudo pago pelas editoras. As pessoas entram numa loja e viram sempre à direita. Os livros que estão à direita pagam mais e até os livros que estão em pé. É um negócio inacreditável. É tudo pago, e agora estão-se a vender muitos menos livros. Há uns tempos fui à Gulbenkian comprar uns livros, entre eles um de Diderot. Perguntei-lhes quantos vendem por ano? Três. Mas não faz mal. Vão continuar a vender todos os anos. São os long-sellers.

Gostava que os seus livros fossem sempre long-sellers?
A minha aceitação foi feita de fora para dentro. Havia uma aceitação muito grande pela crítica universitária enquanto aquelas pessoas que escrevem resenhas nos jornais me davam porrada. Gente que não percebe nada de livros. Depois dão estrelinhas... “Memória de Elefante”, com todas as ingenuidades que tem, já teve trinta e tal edições. Uma vez chegou-me uma edição e eu ia almoçar... Pus-me a folheá-la e espantei-me. O livro não tem nada que ver com o que faço agora. O que me surpreendeu foi a força do livro. Quer dizer... se eu fosse editor pensava: “Este miúdo vai escrever coisas do caraças.” Mas é um livro desequilibrado, cheio de defeitos, começa como a história familiar e acaba como uma saga.

Hoje preocupa-se com o equilíbrio nos livros?
Hoje, preocupo-me em escrever. Trabalho sem plano. Agora sei que a este livro que comecei em julho faltam-lhe dois capítulos e meio. Escrevo de manhã, à tarde e à noite.

O último livro publicado acaba assim: “E seguimos os dois juntos dando as ancas até nos dissolvermos na luz...” É a ideia que tem de morte: dissolver-se na luz?
Não penso muito na morte. Agora foi a morte do meu irmão João, de quem eu gostava muito. Já a morte do Pedro me tinha custado horrores. A morte de um amigo é uma coisa pavorosa. Quando morreu o Zé [Cardoso Pires] puseram o corpo no Palácio Galveias. O ministro Manuel Maria Carrilho estava a cinco metros do caixão numa conversa animadíssima, a gargalhar. Não imagina o que isso me custou. Tive vontade de chegar ao pé dele... Agora, com a morte do João, era gente, gente, gente... Ele sabia que ia morrer. Teve uma coragem... Uma coragem extraordinária. Veio aqui de propósito. Estivemos ali [na sala] quatro horas a falar. A falar não. Porque ele dizia: “Sabes sempre o que eu estou a pensar e eu sei sempre o que estás a pensar.” Éramos os dois primeiros e muito próximos. Dormíamos no mesmo quarto. Não precisávamos de falar para saber o que outro sentia. Isto que a gente tem com os amigos, com o Zé, com o Dinis [Machado]. O Dinis era um homem de muito talento e era tão despretensioso. Os bons escritores eram humildes. O Zé era humilde, embora sofresse imenso com a geração dele, o Vergílio Ferreira, o Abelaira, Saramago, com quem tinha uma competição enorme. A melhor definição de Saramago é de [Juan] Marsé: “Non es un escritor es un predicador.”

Qual foi a história que teve com Saramago?
Nunca tive nada contra ele. Ele tinha-me um pó. Uma inveja. Nunca percebi porquê.

Nunca houve uma guerra?
Não, eu não sou malcriado. Conheci-o numa viagem ao Brasil. Apareceu aí uma brasileira que andou com um poeta e levou ao Brasil uma série de escritores, o Zé, o Fernando Assis Pacheco, o Saramago, o Egito Gonçalves, o Alexandre O’Neill, de quem fiquei amigo. Eu era o mais novo de todos. Eles estavam todos publicados no Brasil e eu não. No dia seguinte, aqueles velhos recebiam dez ou 15 cartas e eu zero. Nada. Com o Saramago nunca tive uma conversa. Nesse ano, era também o primeiro ano daquele grande prémio da APE (Associação Portuguesa de Escritores), e que o Zé ganhou com “Balada da Praia dos Cães”, contra o “Memorial do Convento”, e o Saramago ficou numa fúria. O Saramago achava-se mesmo um grande escritor. Eu sempre achei aquilo uma merda, ainda não o conhecia. Sempre teve mulheres de direita enquanto se afirmava comunista. Nunca correu riscos. Nunca foi preso. Nunca tive uma conversa com ele sobre livros.

Nunca houve uma conversa?
Como havia de ter? Não há tertúlias. Não nos encontrávamos muito. Nunca tive uma conversa com ele mas também não me interessava muito.

O último livro publicado é sobre algo de que tem um certo receio, perder a memória... Como é que nasceu?
Não sei. Na altura, vivia no Conde Redondo... Tenho medo de poder ofender alguém. Havia uma atriz que morava ali perto com quem eu nunca tive nenhuma conversa. Era uma mulher de setenta e muitos anos ainda interessante e ela não tem Alzheimer nenhum...

Há livros que nascem de pessoas que se cruzam consigo num momento?
Não, nem sempre. Uma vez anunciei um livro que se ia chamar “Regresso das Caravelas” e houve um camelo que foi logo registar o título. Depois foi um sarilho, ele queria dinheiro. Não sei porquê mas agora os títulos são compridos. Este agora tem um título “Até Que as Pedras Sejam Mais Leves Que a Água”. Aqui volto a África, a propósito de uma matança de porco numa aldeia perto de
Lisboa.

Viu alguma matança do porco?
O animal a gritar, a gritar, a gritar. É horrível. Fazia-se lá em Nelas e em casa dos meus avós em Benfica. Aquilo impressionava-me imenso. A crueldade daquilo. Depois, o porco é o animal mais parecido connosco. Aquilo é tão humano.

Como é que regressa a África?
É para acabar. Porque só faço mais esses dois livros... Não sei explicar. Se soubesse explicar não valia a pena escrever livros. Queria meter tudo lá dentro. A vida toda. Toda lá dentro.

Já lá vão tantos romances, e depois há as crónicas...
Espanta-me que as pessoas gostem das crónicas. Jogo a vida nos livros. Houve algumas crónicas que foram importantes para mim, que me comoveram, sobre homens de quem eu gostava, que morreram, como o Eugénio de Andrade. O Eugénio tinha gestos de uma delicadeza que não imagina. Nunca me falou de homossexualidade. Nada, nada. Foi uma coisa boa que os livros me trouxeram, foi conhecer pessoas. O Zé [Cardoso Pires] é que foi uma amizade de toda a vida. O Dinis [Machado], que trouxe para a minha casa quando a mulher dele morreu. O Egito Gonçalves, o Pedro Tamen, o Alexandre O’Neill. Também só gosto de homens mais velhos e depois eles morrem.

Porque é que não fala de amigas? Não as teve?
Tive duas grandes amigas. A Maria Velho da Costa. Nunca tinha publicado nada quando voltei da guerra para o Hospital Miguel Bombarda. Ela estava lá a fazer uma tese. Depois publicou “Português; Trabalhador; Doente Mental”. Ficámos muito amigos. E a Agustina [Bessa-Luís]. Era uma mulher fascinante. A primeira vez que fui ao Porto, ela estava à entrada de uma livraria qualquer e disse-me: “Venho dar-lhe as boas-vindas em nome do Porto.” O Porto era ela!

Tinha alguma coisa em comum com a Agustina?
Imensas coisas... Quer dizer, ela tinha uma alegria de viver que eu não tinha: um imenso sentido de humor. Ela dizia: “Sou tão feliz com o meu marido que nos deviam chamar Casal Garcia.” Tinha muita graça. O Eduardo Lourenço, de quem sou muito amigo, dizia que lhe chamava rainha Vitória. Não era uma mulher fácil. Quando não gostava podia ser arrasadora. Para ela, havia muito pouca gente com talento. Nem sei como é que ela escrevia. Não fazia emendas. Deitava as folhas para o chão, que o marido, que era um santo, apanhava. Ela tinha qualquer coisa, muito bebida no Camilo, e o Camilo andou a beber nas fraldas do Filinto Elísio. Mas ela tem qualquer coisa que os outros não tinham.

O que pensa sobre o Nobel da Literatura deste ano?
Nem penso nisso. Pensava que o prémio fosse muito mais dinheiro.

Ouvia Bob Dylan?
Claro, toda a gente ouvia.

Gosta?
É bom. Foi o que ganhou o Nobel, não é? É bom. Nunca comentei os prémios que ganhei, não posso comentar aqueles que não ganhei. É idiota. Sei lá quais são os critérios. Não sei. Agora, a poesia dele, a poesia dele é boa. As letras do Paul Simon também são magníficas... Este prémio tem este barulho todo porque dá mais dinheiro que os outros.

É só o dinheiro que conta? E a história?
Não fica nada para a história. Quem é que ganhou há cinco anos? Já não me lembro. Acho a lista do Prémio Jerusalém muito melhor. E então estes últimos Nobel são muito mauzinhos. São os escritores que honram o prémio, não é o prémio que honra os escritores. Porque é que o Tolstói, que morre em 1910, nunca ganhou? Aquilo para mim é um mistério. Ganhei os prémios que mais me comoveram. Quando foi o Prémio Europeu [The Austrian State Prize for European Literature] comoveu-me ver os emigrantes portugueses a chorarem porque era a primeira vez que a bandeira estava na chancelaria. Diga lá se isto não é melhor que o Nobel? O Prémio Jerusalém, que tem uma lista excelente, começa com o Bertrand Russell. Tem Borges, de que não sou grande fã, mas ele é bom. É uma chatice. Há escritores de quem eu gosto que não são bons, e há escritores bons de quem eu não
gosto...

Dê-me exemplos...
Não teria escrito o que escrevi se não fosse o Blondin, que li com 13 ou 14 anos e que me maravilhou e com quem aprendi muitas coisas.

E também leu muitos policiais?
Não, porque sou muito cagão. Depois descobri o Chandler e percebi que era um escritor. É engraçado porque Egito percebeu que Conrad era um grande escritor e Proust não. Como vê, todos temos estes pontos cegos e eu também devo ter. É muito difícil. Estamos muito em cima das coisas. Não temos distância. Depois, confundimos as razões porque gostamos ou não gostamos da obra. Há muitos elementos afetivos. É muito difícil julgar. Confunde-se a pessoa com a obra e a obra com a pessoa. Se uma pessoa é simpática estou muito mais disponível para gostar daquilo que ela faz.

Pode não conhecer a não ser através da escrita...
O [Robert Louis] Stevenson insistia que a primeira qualidade que um livro deve ter é charme. Um livro sem charme não era bom. Há escritores que nos entusiasmam quando somos adolescentes. É uma desilusão muito grande lê-los mais tarde. Lê o Jorge Amado aos 15 e é um entusiasmo, volta a ler aos 40...

Alguns dos seus livros só se poderão ler aos 40, não?
Não sei.

Como este último...
Acha que um miúdo não entra nisso?

Não sei. Acho que será mais difícil. É uma mulher acamada, a perder a memória...
Não sei se é sobre isso... O livro trata do que vai escrito dentro. Lembro-me que me enterneceu escrever sobre a relação que ela tem com o pai. Napoleão, se calhar, tinha razão quando dizia que havia mortos que é preciso matar.

Como a memória dos mortos?
Uma vez estava na casa do [George] Steiner e ele disse-me: “Nunca ninguém está preparado para morrer.” Ninguém está. Trabalhei muito com suicidas no hospital. O suicídio era sempre o suicídio do outro, para viver eternamente. O meu bisavô, que se matou, estava a matar o cancro que tinha. Não se estava a matar a ele. O Steiner dizia que não se aguenta a ideia da morte porque não se aguenta a ideia de não ler o jornal no dia seguinte. Não saber o que aconteceu.

Política? Falamos ou não?
Não tenho nada para dizer. Nunca tive o coração à direita, mas nunca falei de política. Ainda fui candidato pelo Partido Comunista. Foi uma coisa ingénua da minha parte. Os políticos são repugnantes, de uma maneira geral.

Mas teve amigos políticos?
Sim, Mário Soares.

Continua a precisar de estar cansado para escrever?
Quando o lado crítico deixa de funcionar, as coisas saem com menos espontaneidade. Vou para a cama de rastos. Durmo como um porco e não penso mais no livro.

Não precisa de tomar nada para dormir?
Não, não tomo. Às vezes tomo um Valium.

Os psiquiatras tem tendência a automedicar-se...
Não sei, não conheço muitos. Têm mais suicídios do que as outras especialidades.

Nunca sentiu falta da medicina?
Não. Mas gostava de ser médico. Uma vez, apareceu ao meu pai uma senhora com um problema neurológico. O meu pai perguntou-lhe: “Como é que a senhora faz as coisas da casa?” Ela, uma mulher analfabeta, deu a melhor definição da dor que alguma vez ouvi: “É tudo a poder de lágrimas e ais.” É uma definição de sofrimento como eu nunca vi. Perfeita. As frases que ouvi! Uma vez, no Hospital Miguel Bombarda ia a sair do carro e aparece-me o tipo que tinha aquilo que os médicos chamam esquizofrenia. Ele deu-me a melhor lição de literatura que alguma vez ouvi. Eu estava a sair do carro, e ele parecia que trazia dentro dele um mistério e que me ia fazer uma confissão importantíssima: “Sabe, senhor doutor, o mundo começou a ser feito por trás.” Eu pensei: “Porra! Escrever é isto. É fazer por detrás. O mundo começou a ser feito por detrás.” Ouvi tantas frases assim. Tudo a poder de lágrimas e ais. Uma camponesa analfabeta? Ouvi tantas frases tão bonitas das pessoas. O que há de dor e dignidade nisto?

Já usou?
Não, não tenho coragem. É preciso merecer e eu não mereço. Uma ou outra usei.

Fonte –  Expresso  
Texto - Cristina Margato
Fotos - Tiago Miranda