"Lá em casa ninguém se zanga com a política. A cozinha não é má"
Entrevista
ao advogado, que esteve detido no Aljube, onde conheceu Mário Soares, e foi
ministro do Ultramar no início dos anos 1960. A pretexto do novo livro de
crónicas do DN, recordou o seu percurso político, cívico e académico
No seu gabinete de todas as manhãs, na Academia das Ciências de
Lisboa, Adriano Moreira recebeu o DN, numa conversa que se prolongou a dois
tempos, para desfiar histórias e nomes, numa memória que raramente se
atrapalhou. O professor universitário jubilado tem um livro novo que reúne as
crónicas do DN e outro na calha. Da janela do gabinete vê-se o Passos Manuel,
onde fez o liceu e para onde ia a pé desde Campolide. Foi por onde começou a
entrevista...
Veio
"criança de colo para a cidade grande", mas ao mesmo tempo sentia-se
um transmontano a viver em Campolide. Esses dois mundos completavam-se, ou
havia grandes diferenças?
Nesse tempo, Campolide era uma espécie de aldeia anexa a Lisboa,
eu por exemplo andei neste liceu e eu vinha a pé de Campolide até aqui [e
aponta pela janela].
Com um grupo de
colegas.
Sim, eram dois. Depois voltávamos ao fim das aulas, eram
quilómetros de caminho. Era um meio que também tinha alguma coisa de aldeia.
Acontece que os transmontanos eram, e são, muito solidários. Todos os amigos do
meu pai e da minha mãe eram transmontanos que estavam em Lisboa, e eu sempre
fui passar as férias grandes com o meu avô para a aldeia. Eram três meses, três
meses de liberdade, isso fez de mim muito mais transmontano do que lisboeta -
não só a gente com quem nos dávamos. Aqui tem como é que eu fiquei
transmontano. Uma coisa curiosa: quando tive de ter funções públicas, a
qualquer um dos sítios onde eu chegava havia logo transmontanos, vinham logo
ter comigo.
Ainda vai a
Grijó de Vale do Infante, a aldeia onde nasceu?
Vou. Sabe o que significa Grijó? Quer dizer igrejinha, por isso
há vários em Portugal. Eu vou lá de vez em quando por várias razões - primeiro
porque estão lá enterrados o meu pai e a minha mãe. Eu tenho sempre um afeto
permanente pelos meus pais. Um pai que é filho de um empregado de um moinho,
vem para Lisboa e faz serviço militar e, como era costume da migração lá de
cima, eles tinham oportunidade na polícia, na Guarda Republicana e nos
elétricos. O meu pai acabou a vida como subchefe da polícia do Porto de Lisboa.
Este homem, com estas dificuldades, resolveu que tinha um filho e uma filha e
que os dois tinham de ter um curso superior - imagina o sacrifício? A minha
irmã é médica e eu sou esta pessoa, licenciado em Direito e sou doutor em não
sei quantas coisas.
Falava da
ligação com o seu pai.
Tenho sempre uma fotografia do meu pai comigo [puxa da carteira
para a mostrar] e no meu escritório. Em casa também, na sala de estar, um retrato
que um amigo meu, que é pintor, pintou e fez-me uma surpresa.
A sua mãe?
A minha mãe também era da aldeia, ficava em casa mas fazia
trabalhos de costureira. Aquela gente era especial porque o pai da minha mãe já
era assim uma pessoa que tinha estado no Brasil, dois anos (teve uma zaragata
com a administração pública em Macedo de Cavaleiros e depois teve de emigrar).
Depois voltou para a aldeia. Era um homem muito lido, recebia jornais, como O
Século, que lia todos os dias num banco de pedra.
É esse avô de
quem diz que só por o ter conhecido valeu a pena já ter vivido?
É. Era um homem extraordinário, sensato, muito lúcido e muito
inteligente, aliás, a minha mãe ficou com a inteligência dele. A vida na aldeia
era terrível, ele teve oito filhos e enterrou cinco com tuberculose, mas nunca
o ouvi queixar-se. Era rijo, com carácter, nada de se queixar. É uma coisa
simples. Eu tive uma vida muito simples, fiz o curso secundário a ir a pé,
depois fiz o curso universitário a ir a pé para o Campo de Santana e a voltar
para Campolide sempre.
O seu mundo, na
juventude, é também o mundo da Segunda Guerra Mundial. Aquilo que chegava da
Europa até cá ajuda-o a moldar-se politicamente?
Eu devo dizer que, na altura, a política não me interessava.
Mas junta-se em
1945 a uma lista do MUD (Movimento de Unidade Democrática, de oposição).
Não. Isso foi porque no escritório onde estava a fazer o estágio
toda a gente assinou essa lista - e eu também. Eram eleições livres e eram o
que pediam. Eu formei-me com 21 anos e estava naquele escritório e toda a gente
assinou.
Não é a Segunda
Guerra Mundial que o muda politicamente?
Eu entrei na Faculdade de Direito com 16 anos. A grande
inquietação que nós tínhamos eram as notícias sobre o avanço das tropas alemãs
que já estavam nos Pirenéus, e a invasão da península era uma coisa possível. O
sentimento da população em geral era contra os alemães. Não é que o povo
soubesse o que era o nacional-socialismo, mas o homem estava a destruir a
Europa, isso era bastante para ter medo e até a nível moral ser contra. Como eu
tive toda a minha juventude com necessidade e esforço físico, a política não me
interessava realmente. Só muito tardiamente é que comecei a interessar-me,
sobretudo quando enveredei pela vida universitária. Houve duas coisas - a que
eu chamo as minhas quedas no mundo - que me levaram a interessar a sério pelas
coisas: fui convidado para ser professor da Escola Superior Colonial. E [o
ministro do Ultramar] Sarmento Rodrigues pediu-me para estudar o problema
prisional do Ultramar. Fui a todas as colónias de África e escrevi um livro,
que foi a minha tese de concurso, sobre O Problema Prisional do Ultramar.
Ganhou um prémio da Academia das Ciências, que nesse tempo era nem mais nem
menos do que 80 contos, e dei-o todo à minha mãe para reconstruir a capela da
aldeia.
A pedido da sua
mãe?
Não, ela não pediu, não foi preciso, eu sabia da capela, foi um
gosto muito grande para mim, a minha mãe era muito crente e vi que era uma
coisa que poderia fazer, de maneira que, com esse prémio, paguei.
Voltando à
tese...
Eu fiz isso e inspirou a "reforma Sarmento Rodrigues"
no regime prisional. Ainda hoje acho que a reforma foi boa. A minha inspiração
principal veio de um médico que havia no Congo, que era um homem que além de
médico era teólogo e músico e resolveu adaptar o hospital à cultura nativa. O
que interessava eram as populações nativas, eu disse que só podia haver campos
de trabalho para que tivessem uma atividade em que fizessem a sua agricultura e
com bom comportamento podia significar juntar a família. Comecei a
interessar-me por aquilo e digo que foi a minha primeira queda do mundo porque
conhecia o Direito, era o que eu ensinava, mas vi que não era o Direito que
estava em vigor. Depois vem o problema de Portugal entrar nas Nações Unidas: o chefe
da delegação foi o Dr. Paulo Cunha, que era um grande professor, tocava
violino, era alegre, e foi-me buscar à Escola [Superior Colonial]. Fui com ele,
era gente muito nova e todos de grande categoria, como Franco Nogueira, ainda
jovem conselheiro.
Estamos em
1957.
Por aí. É a minha segunda queda no mundo. Eu sabia muito bem o
que era a Carta das Nações Unidas e a Declaração de Direitos Humanos, tudo do
Direito, mais uma vez, feitas por ocidentais, mas foi a primeira vez na
história da humanidade que ouvimos representantes de áreas culturais
diferentes, que tinham sido colonizados, a falar ao mundo em função dos seus
valores. O Raul Ventura, que era o ministro que se seguiu a Sarmento, organizou
um centro de estudos do Ultramar e eu é que fiquei diretor. Fizemos uma data de
missões de investigação e é aí que eu começo a defender as teses de que o
estatuto do indigenato tem de acabar.
Teses que vai
aplicar quando chega a ministro do Ultramar.
Apliquei tudo. Eu mandava um relatório meu para o Ministério do
Ultramar e vim a verificar que eles o liam porque dois anos depois o Dr.
Salazar manda-me chamar para falar comigo. Quando lá cheguei o Dr. Salazar
disse-me: "O senhor escreveu um relatório para o Ministério do Ultramar e
disse que em 1961, mais ou menos, haveria revolta, como é que adivinhou
isso?" E eu respondi: "Porque tive uma professora na primária que me
ensinou a fazer contas", "então como é isso?", "é simples,
Portugal não seria condenado enquanto tivesse um terço dos votos das Nações
Unidas e eu fiz as contas à entrada dos países e verifiquei que se perdia o
terço nessa data, éramos condenados, eles tinham o apoio internacional de todos
os lados e a previsão era essa", e então ele disse-me: "O senhor tem
razão para dizer que não ao que eu lhe vou perguntar, mas quer vir pôr essas
reformas em vigor?", e eu disse "não posso responder assim porque não
pertenço a nenhuma política nem sequer fui da Mocidade Portuguesa e, para me
meter numa coisa dessas, quem é que me apoia?", e diz ele "apoio
eu", e eu disse "não chega, preciso de gente técnica". Depois
ele ainda disse: "Eu sei que o senhor tem razões para me dizer que não por
causa da questão do Santos Costa", e eu disse-lhe "senhor presidente,
desculpe, mas não é o único português que põe os interesses do país acima das
suas discordâncias". E aqui tem como é que eu entrei.
Esse episódio é
de 1948, quando defende a família de um general num processo de homicídio
voluntário, que faz um pedido de habeas corpus, o primeiro de todos, e acaba
preso no Aljube.
Essa história nunca a abordo muito porque já morreram as
pessoas, mas sim, fui preso. António Ribeiro, que era advogado da Standard
Elétrica - que foi onde eu comecei a trabalhar -, ele é que me encarregou de
tratar desse assunto. Um dia chamaram-me à PIDE, o inspetor conhecia-me de
miúdo porque o meu pai era subchefe da polícia, quando eu entrei, disse:
"Tu é que meteste aquela velhota num sarilho?" e eu disse "qual
velhota?", "a viúva do general Mouzinho", e eu disse "não a
conheço", "mas ela fez a queixa em nome dela e disse que falou
contigo", "não", "então quem é que falou contigo?", e
eu disse "isso é segredo profissional, não posso dizer". Ele foi ao
telefone e depois voltou e disse: "Olhe, eu falei com o ministro da
Justiça, que foi teu professor, não foi?", e eu disse "foi",
"ele disse que não podia esperar outra resposta tua mas que te
prendesse", "tudo bem, cumpra as ordens".
Esteve ainda
dois meses detido?
Quase. Salazar mandou pedir o processo que metia o Santos Costa
e arquivou o processo e disse "ponha o rapaz em liberdade, que é o único
que se portou com dignidade". Quem interveio logo a seguir foi a Ordem dos
Advogados, naquele tempo ser advogado era uma coisa a sério. O ambiente da
advocacia era muito diferente de hoje, eu conheci advogados espantosos nesse
tempo, ainda fiz tribunal, defesas, e não correram mal. O poder da palavra pode
vencer a palavra do poder, era o conceito desse tempo.
Foi um mês e
meio complicado para si?
Não, os que estavam presos eram todos comunistas, de maneira que
eu era uma pessoa à parte.
Conheceu Mário
Soares no Aljube?
Sim, e ficávamos amigos. Ainda hoje [no dia da entrevista] vou
jantar a casa dele. Ele é um ano mais novo do que eu, eu tinha lá ao meu lado,
na minha camarata, a História da Filosofia do Hegel e tinha O Príncipe [de
Maquiavel], que é um livro muito célebre. Ele chega ao pé de mim, diz que se
chama Mário Soares e diz "você lê uma literatura toda reacionária" e
eu: "Estou a fazer estudos para miguelista" - e ficámos amigos até
hoje.
Esteve preso
por quase suspeitas?
Sim, "quase suspeitas", e por isso é que Salazar me
disse "o senhor tem razões para me dizer que não", que é quando lhe
digo "o senhor não é o único português que mete os interesse do país acima
das discordâncias".
Acabar com o
indigenato significava exatamente o quê?
A relação dos colonizadores, quando começa no século XVI, é de
senhores para escravos. Quem acaba primeiro com a escravatura nesta metrópole
chama-se Marquês de Pombal, depois no Ultramar é o Sá da Bandeira, mas logo a
seguir veio o estatuto do indígena, que era a negação da cidadania, que
permitia abusos do ponto de vista selváticos. Além de revogar o indigenato, fiz
um código de trabalho rural que foi considerado o mais avançado de África.
Depois, é claro, instalei o ensino superior e foi uma luta. Fiz o que pude
naquele período todo, mas para isto foi uma fadiga muito grande.
Oliveira
Salazar pede-lhe então para mudar de política.
Em determinado momento. Isto, como calcula, atingiu interesses
brutais, mudou-se uma estrutura. Eu tenho um filho que é advogado, o João, que
esteve em Moçambique, e tinha um colega africano que um dia lhe perguntou se
era filho do Adriano Moreira, e ele disse que sim, e ele disse "então vou
dizer-te uma coisa: o meu pai africano disse que só teve o primeiro dia de
felicidade na vida, já tinha 70 anos, quando lhe deram o bilhete de identidade
por causa do decreto do teu pai", portanto veja o que representava para
eles. O próprio Salazar começou a sentir reações das bases de apoio dele. Ele
chamou-me e disse-me: "Quando o chamei disse-lhe que apoiava as suas
reformas, tenho cumprido ou não?", e eu não fazia ideia para que era a
conversa, disse "sim, até agora tem cumprido". E disse ainda:
"Mas devo dizer-lhe o seguinte, as reações são de tal ordem que eu próprio
não estou seguro de poder continuar chefe do governo, temos de mudar de
política", e eu com convicção disse assim: "Vossa excelência acaba de
mudar de ministro", e ele disse "eu já estava à espera que me
respondesse isso", e vim-me embora. Foi sempre atenciosíssimo comigo e,
daí por diante, nunca mais tive qualquer atividade política, como não tinha
tido antes. Até que veio a Revolução e fui saneado como toda agente.
Nem essas
divergências manifestadas com as estruturas do regime o livraram de
saneamentos, na empresa e na universidade.
Na universidade até devo dizer que foi onde tive as reações mais
inesperadas, mas eu não estava cá, estava no Brasil em serviço. Quem me disse
que não voltasse foi o almirante Pinheiro de Azevedo, que tinha sido meu aluno,
e eu disse "então mas como não volto se tenho aí a minha mulher e três
filhos?", e ele disse "eu trato disso, eles vão ter consigo".
Mas não tratava era da minha vida - passei dois meses difíceis. Conhecia muita
gente no Brasil, mas nunca fui de andar a pedir coisas. Um dia veio um
professor da Católica, que me encontrou, foi a minha casa, estava numa casa
bastante humilde, enfim não chovia lá dentro, e disse-me "ando há dois
meses à sua procura para o convidar para catedrático da Universidade Católica
do Rio de Janeiro". Quem me mandou reintegrar foi o Eanes, com efeito
retroativo, no Instituto Superior Naval de Guerra e na Universidade. Ainda hoje
tenho gratidão e respeito pelo general Eanes.
Esse tempo
viveu-o com ressentimento no Brasil?
Não, eu não sou de ressentimentos.
No fundo,
aquilo que lhe estava a acontecer era explicado pelo contexto da história?
Sim. Depois voltei, fui professor da Marinha, ainda outro dia me
fizeram uma festa e disseram que eu entrei para a Marinha há 60 anos, todos os
chefes do Estado-Maior que estão reformados foram meus alunos, portanto esta
coisa do Eanes comoveu-me muito.
Quando
regressa, é convidado por Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa e Narana Coissoró...
Sim, o Narana que tinha sido meu assistente na Universidade.
E é convidado
para o CDS?
Sim. Eu achei que esse momento era muito difícil para o país.
[Antes do 25 de Abril] é a tropa que vai avisando que a guerra não se ganha.
Segunda coisa: o grande suporte do regime eram as Forças Armadas, e houve
avisos de que era preciso mudar. Depois aparece um grupo de Margão, que pede
uma constituição federal porque não quer ser invadido pela União Indiana,
ninguém aceitou, e houve um movimento para Cabo Verde serem ilhas adjacentes...
Eu aí não tinha intervenção nenhuma, mas sei que isso era assim e alguma
projeção que eu mantive é porque eles sabiam as coisas que eu tinha escrito.
Quando vem o 25 de Abril, a primeira fase chama-se golpe de Estado (que, tecnicamente
é quando um elemento da estrutura se afasta), a revolução começa depois. Há
[então] um debate e devemos muito ao general Eanes nesse aspeto - a
constitucionalização do regime - que ou se tem uma via revolucionária de
extrema-esquerda ou se tem uma constitucionalização europeia, que é o que o
general Eanes consegue orientar, e também o Freitas do Amaral e o Jorge
Miranda. Eles vão ter comigo e convidam-me pelas coisas anteriores que eu tinha
feito e que tinha dito e eu, mais uma vez, aceito pelo interesse nacional.
Agora era interessante que, tendo a Europa sido feita pelas democracias
cristãs, o país onde a democracia cristã não vingou era o país mais católico -
é interessante.
São tempos de
trincheira. Ou acha que, apesar de todas as diferenças ideológicas que eram
fortes naquela época, eram tempos em que o diálogo era possível?
Na Universidade, foi sempre possível, e se você foi estudante
ali [no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas], encontrou esse
espírito, a pessoa fala livremente.
A democracia
foi uma aprendizagem para todos?
É evidente que mudar de regime tem de mudar as pessoas, tem de
mudar os hábitos. Mas não se teria feito isso se não houvesse homens lúcidos, e
o principal, a meu ver, foi o Eanes e o Jorge Miranda e essa gente, que
conduziram isto em termos de constitucionalizar o país no modelo europeu. Foi
uma grande batalha que eles ganharam.
A ideia de
aderir à União Europeia, a CEE de então, por Mário Soares, também ajuda a
consolidar a democracia?
Tudo isso. O Partido Socialista teve um papel fundamental nisso:
o comício da Fonte Luminosa [a 19 de junho de 1975] é um facto histórico
fundamental. A linha constitucionalista europeísta ganhou mas foi uma batalha.
Devo dizer que gostei de estar no Parlamento durante todo aquele tempo, e acho
que a cerimónia da saída não foi má [e sorri].
Depois da sua
liderança no CDS, num tempo difícil em que o partido estava reduzido a uma
dimensão mínima...
Até com uma ação de despejo no Caldas [sede do partido].
Depois disso, e
depois da sua primeira experiência política ainda no Estado Novo enquanto
ministro, refugiou-se na universidade. Esta era um refúgio importante para si?
Não era um refúgio, para mim é uma vocação.
E a política
foi uma desilusão?
Não neste sentido. Eu achei que fazia aquilo que
em consciência devia ao país. Agora, foi um esforço que não resultou. Mas eu
tenho algumas provas, depois disto tudo. Por exemplo, há uma universidade em
São Vicente [Cabo Verde] e eu devo ser o primeiro doutor honoris causa depois
da independência. Aqui há tempos ajudei a fazer aquele tratado de Cabo Verde
com a União Europeia porque o embaixador que estava cá veio pedir-me, a mim e
ao Mário Soares. Fizemos isso, passado algum tempo foi a minha casa a ministra
dos Negócios Estrangeiros de São Tomé e disse-me: "Olhe, eu vinha pedir a
sua ajuda porque o senhor ajudou a fazer uma coisa para Cabo Verde que nós
também precisávamos." Eu disse-lhe: "Ajudo, mas primeiro tem de tomar
um compromisso comigo, não mudam o nome da rua que lá têm." Sabe qual é o
nome da rua? Rua Ex-Adriano Moreira" [risos]. Ela, coitada, é que depois
mudou, passado pouco tempo deixou de ser ministra.
Esperava ver
uma das suas filhas, Isabel, chegar à política? Foi uma coisa que cultivou lá
em casa
Não, isso é uma decisão dela. Eu procurei educar os meus filhos
com um certo sentido de liberdade e responsabilidade - e a mim também ninguém
me encaminhou. Segui muito o meu pai e os exemplos dele. Esta filha tem comigo
uns cuidados e um afeto que é uma coisa... Uma vez um jornalista perguntou-lhe
"faz estas coisas e então e o seu pai?", "o meu pai é o homem da
minha vida" [sorriso largo].
Conversam muito
sobre política lá em casa?
Então não?! À vontade. Ninguém se zanga com a política. A
cozinha não é má [risos]. Sabe quantos netos tenho? Tenho 14. De vez em quando,
quando se juntam todos, é uma festa.
No Dicionário
de História de Portugal, Manuel de Lucena diz de si que "releva de fortes
tensões interiores, constitutivas de uma personalidade aberta a desencontrados
sinais do tempo e habitada por coincidências de contrários". Revê-se
nestas palavras?
Nunca tinha pensado nisso. Mas há uma coisa que em mim é
constantemente verdadeira. Faço sempre esta síntese, aprendi, sobretudo nas
Nações Unidas e depois nos vários sítios por onde passei, sempre que fossem
coisas de relações internacionais: nós não temos de ter tolerância pelas
diferenças, temos de ter respeito. Não é a mesma coisa, não temos de fazer
guerra aos contrários, temos de substituir o combate pelo diálogo, e depois é
preciso nunca esquecer que a dignidade é uma condição de todos os seres
humanos, independentemente da etnia, da cultura ou da religião. Com estas
coisas podemos cumprir dois pressupostos da ONU, que são violados: o mundo é um
mundo único e é a casa comum dos homens. É a única coisa que eu sei ou julgo
saber.
É o seu legado?
Sim. Por isso eu falo muitas vezes no eixo da roda, porque o
eixo da roda são os valores fundamentais. É uma frase que aprendi num romance
que li muito novo: "As rodas andam por toda a parte." É isso: os
valores são o eixo da roda.
Quando diz que
é o seu tempo de se dedicar a denunciar os perigos globais, acha que os textos
deste livro Futuro como Memória, no fundo, são alertas que deixa às gerações
futuras?
O que acontece neste momento, acho eu, é que se comparar o que
foi o projeto europeu de União Europeia e o que está a acontecer hoje - a falta
de autenticidade evidente - julgo que aquilo que há de mais grave na evolução
do poder político é a falta de autenticidade, dizer uma coisa e fazer outra. É
evidente que eu nisto ponho um intervalo que diz respeito ao imprevisível,
porque o governo pode ser atingido pelo imprevisível, mas não nos princípios,
deve responder ao imprevisível com os princípios. É por isso que tenho
defendido que mantenham referência ao Estado social, e quando me dizem "mas
concorda que não há recursos", eu digo "isso eu já ouvi, mas gostava
de ser informado se continuam a haver princípios". A questão é só esta e
não é pequena.
Este seu livro,
que reúne as crónicas do DN, parece ser um livro sem esperança, no seu
preâmbulo parece apontar por aí.
Eu não chamo a isso falta de esperança, tenho esperança de que
se volte à autenticidade dos princípios. Julgo que até há uma exagerada ambição
de ser poético onde digo que se voltem a acender, pouco a pouco, as velas que
faziam que a Europa fosse chamada a "luz do mundo", e essas velas
foram-se apagando pouco a pouco. E digo que vamos a voltar a acender as velas
para ver se a Europa volta a merecer.
Onde é que acha
que a Europa começou a falhar, onde é que as velas se começaram a apagar?
Eu fui muito europeísta. Costumo dizer que nós somos uns
injustos e que esquecemos que nós temos um grande europeísta que se chamava
Camões, porque ele sabia muito bem que a Europa não tinha unidade de língua,
geograficamente é um pouco semelhante a um continente, mas ele dizia que está
unida pelos valores que Cristo trouxe à terra, sendo Portugal cabeça de toda a
Europa - e qual é o português que se lembra disto? Como vê, o europeísmo não é
uma novidade em Portugal. Tenho escrito isso nos artigos do DN. O que me tem
impressionado é que assim como as Nações Unidas disseram para todos os países
serem iguais, mas havia uns mais iguais do que outros - que estão no Conselho
de Segurança -, neste momento os países europeus têm todos a mesma dignidade,
mas estamos divididos entre ricos e pobres. Chipre, Grécia, Itália, Espanha,
Portugal e França, é o império romano outra vez pobre, e os bárbaros do Norte,
ricos. Pelos caminhos por onde eles desceram, para ocupar o império romano, não
foi para destruir, neste momento sofrem os nossos povos à procura de emprego e
de futuro.
E os pobres a
sul da Europa.
Depois, a Europa está rodeada de ameaças que se conjugaram, que
eu acho que é uma época tremenda: tem o Mediterrâneo transformado num
cemitério, o turbilhão, chamado democrático, dos países muçulmanos, o que
mostra como a palavra democracia é generosa (acolhe tantas iniciativas) e ao
mesmo tempo a Europa parece que deixou de ter circunstância, aquela velha ideia
do Ortega, "cada povo é ele e a sua circunstância". Realmente, é um
bocado difícil não ter de falar na circunstância que é a mais grave depois do
fim da Guerra Fria. Por isso escrevi que "o imprevisível está à espera de
uma oportunidade".
E esse
imprevisível coloca o mundo próximo da violência?
O imprevisível está à espera de uma oportunidade, e isto não diz
apenas respeito a Portugal e à Europa. Há uma coisa que eu acho que não está
suficientemente clara, isto para combater a sua ideia de que é pessimista,
porque eu sou otimista - estou é cansado da preguiça. Eu defendo aquela
expressão que é a maneira portuguesa de estar no mundo, mas tem um efeito:
"Temos tempo."
Nesse tempo
cabe a crise dos refugiados e dos migrantes?´
Todas estas ameaças sobre a Europa, todas ao mesmo tempo, tem de
se assumir que é um momento grave, e digo que o é lembrando muitas vezes, que
as grandes guerras começam com incidentes sem importância. A I Guerra Mundial
foi porque mataram um príncipe - que é uma coisa que fazemos desde César, de
vez em quando mata-se um príncipe -, depois elegeram um sujeito [Hitler] cuja
normalidade era discutível e morreram 50 milhões [na II Guerra Mundial]. Se
quiser fazer uma síntese, acho que Portugal tem janelas de liberdade, uma delas
é a CPLP, outra é o Instituto Internacional da Língua Portuguesa. Com uma
circunstância que quero que fique em evidência: o que caiu não foi o império
português mas o "império euromundista", porque era a Holanda, era a
Bélgica, era a França, era a Inglaterra, éramos nós, caiu tudo, com lutas
tremendas...
No livro faz
uma crítica constante ao estado da União Europeia.
Sim, a crítica está nesta síntese: a União não tem conselho
estratégico. Já viu marchar alguma coisa sem conselhos militares?
Há pouco falava
da distinção entre os ricos do Norte e os pobres do Sul. Nos últimos quatro ou
cinco anos, notou-se de forma ainda mais acentuada?
Sim. E vou dizer-lhe porquê: também sou partidário do Estado
social, e este não é contrário - muito pelo contrário - ao mercado, à
iniciativa, respeitando valores. A única coisa que o Estado social reclama são
valores, e é por isso que insisto, quando me dizem que não há recursos, que
pergunto sempre "e princípios, ainda têm?". A mim interessa-me o
mundo e muito Portugal, e sei que Portugal tem elementos para ter um conselho
estratégico sólido e com validade. Há uma coisa que não tem, é tempo a perder.
Fonte – Diário Notícias /Orlando Almeida/Global
Imagens